quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Narrativa de um antigo caixeiro-viajante


                      O "CAPA PRETA" DE IGUAPE

 

               A meio caminho de uma estrada que vai do Estado de São Paulo ao Estado do Paraná, há um desvio que leva à cidade de Iguape. Por conta de meu trabalho de caixeiro-viajante, fui ter a essa cidade, que fica à beira-mar. Encantei-me com o jeito simples da cidade, acostumado que estava com a dimensão e o movimento da própria Capital e de outras cidades, como Santos e Campinas. O casario de Iguape é antigo e concentrado, principalmente, em torno da enorme Basílica, com uma ampla praça à frente. As ruas laterais, com raras exceções, são bem alinhadas, às vezes correndo ao lado de enormes campos, onde crianças e jovens se divertem, jogando futebol. Cheguei a Iguape, ao anoitecer, pois a viagem de “jardineira” foi longa, desde São Paulo.  Durante a viagem, consultei um morador de Iguape, que viajava ao meu lado, sobre um bom hotel ou pensão, simples, mas que também desse refeição. Ele se dispôs a me acompanhar até a “Pensão de Da. Gracinda”.  

               A família dona da pensão era pequena, o casal e uma criança curiosa, que, enquanto conversávamos, não sossegou enquanto não pegou meu relógio de pulso. Gracinda, a discreta esposa, logo providenciou um modesto jantar. Todos me acompanharam à mesa e conversamos. Esperaram que eu dissesse alguma coisa a meu próprio respeito, antes de falarem de si e da cidade. Como sempre acontece nessa primeira troca de informações, entre hóspede e hospedeiros que não se conhecem, a conversa se inicia precavidamente por assuntos neutros, como o tempo, a estrada, para logo, escorregar em temas pessoais, como o estado civil do visitante. A condição de solteiro, num estranho, desperta reações diversas, num casal: no homem, o alarme difuso; na mulher, um solícito, embora um tanto suspeito, maternalismo. Mas logo perguntei pelas coisas locais, e a conversa voltou à neutralidade. Mencionaram os fatos comuns, o trivial da cidadezinha: a pausada monotonia, as pequenas intrigas, os tipos curiosos, os fatos históricos. Logo, talvez suspeitando da insuficiência dramática dessas banalidades, decidiram colorir a conversa com um pouco mais de emoção:

               - Quase sempre, alguém que ande à noite, na cidade, topa com o Capa Preta - começou seu Marcelino, como se tal cognome já definisse um tipo, como o Saci ou o Lobisomem. - Ele costuma assustar as pessoas, surgindo de repente na escuridão. É coisa desses desocupados, que ficam até tarde na rua...

               - Qual desocupados, qual nada! – interrompeu a Da. Gracinda. - O senhor me desculpe falar assim, mas acho que é uma alma penada. Gente de carne e osso não aparece e desaparece, sem mais, nem menos!

               - Não diga bobagem, Gracinda, alma é o miolo da cabeça, vai com a gente no caixão, quando se morre, não fica zanzando por aí. O que o senhor acha, seu Miguel? 

               Tergiversei. Nunca testemunhei o encontro de um ponto comum nas divergências entre materialistas e espiritualistas. Por outro lado, minhas céticas representações metropolitanas são um tanto incompatíveis com crendices, populares ou eruditas. Minhas reticências, no entanto, não foram tomadas como neutralidade, mas como desconhecimento dos fatos, pois a conversa prosseguiu com a narrativa de casos exemplares de sustos e calafrios. Entretanto, a noite avançara e a conversa se interrompeu, quando meus anfitriões tiveram a delicadeza de olhar o antigo relógio de parede ao lado, e me sugerir o merecido descanso. Recolhi-me ao quarto e me preparei para dormir. A boa refeição e a fadiga fizeram sua parte: o mundo se apagou suavemente. Mesmo sem o aval da Medicina e da Filosofia, sempre considerei que a principal função do sono é livrar-nos da cansativa exatidão das dimensões espaciais e das rígidas medidas temporais. Durante o sono, os sonhos nos permitem deslocar sem compromisso com as distâncias, e os fatos ocorrem numa cronologia arbitrária, estranha às indicações do relógio ou do calendário.     

               Entretanto, no meio da noite, um tropel, acompanhado de gritos agudos, sonorizou as indefinidas imagens de meus sonhos. Embora não tenha despertado completamente, recordo que puxei o cobertor, como para garantir o silêncio e o agradável calor da cama ou, talvez, me proteger daquele ruído sinistro. Pela manhã lembrei vagamente daqueles sons noturnos, mas uma obscura vaidade abafou a certeza de que eu os ouvira, realmente.  Na mesa de café, conversando com os donos da casa, mantive essa posição, e afiancei que dormira profundamente. Eles foram discretos e não tentaram me extrair algum comentário, embora eu suspeitasse que esperavam, pelo menos, alguma medrosa pergunta.   

               Meses depois dessa memorável viagem, assisti a um simpósio, na Faculdade de Filosofia, em São Paulo, sobre um curioso tema: "O pensamento primitivo e a Religião". O encontro foi comandado por três eminentes cientistas sociais, um filósofo, um psicólogo e um antropólogo, cujos nomes não mencionarei, para não comprometê-los com minha reprodução ou, talvez, minha interpretação, de suas respectivas palestras que, eu sei, estarão contaminadas pelas minhas próprias convicções. Um sarcástico dramaturgo irlandês afirmou que nosso trabalho intelectual consiste em adaptar o mundo e suas revelações à nossa mente defeituosa. Malgrado esse desanimador ponto de vista, atrevo-me a fazer um resumo do simpósio:

               - Se Deus não existisse, os homens o inventariam, de qualquer jeito, como inventaram o demônio (e o Capa Preta, pensei comigo). O medo ancestral é um poderoso e profundo sentimento que habita a nossa imaginação e precisa ser preenchido com alguma coisa, preferivelmente assustadora. ("Que boa a vida, se não houvesse o inferno" lembrei eu, de um velho adágio que aprendi em Iguape), o que mostra o outro lado da questão. Os profetas do Apocalipse são uma espécie de "voz do povo" corporificada, que traduz num discurso apavorante aquele medo que todos trazem no seu inconsciente. Na dimensão psicológica, o medo é produto da necessidade de emoções fortes, que dão colorido à vida. Da parte da Biologia, a própria evolução selecionou os espécimes humanos que traziam na sua genética o temor e, mesmo, a covardia. Os ancestrais temerários, ou ingênuos, que ignoravam o medo, foram devorados pelas feras que, imprudentemente, resolveram enfrentar. O ser humano precisa do medo tanto para sobreviver como para medir sua coragem e seu poder. Se não tem uma causa imediata para que ele se manifeste, provoca-a. O perigo, real ou imaginário, dá consistência ao mundo e dignidade à vida humana. Daí a função da fantasia, na vida das pessoas de vida pacata, que as faz apreciar histórias de pavor e sofrimento, ainda que terminem com a morte do herói (neste ponto, sem pensar em exagero, ou blasfêmia, incluí aqui o drama do Novo Testamento). Enquanto o herói sofre, triunfa ou morre, nós

sofremos ou usufruímos, com ele, a dor ou a vitória, a famosa "catarse", assinalada por Aristóteles e bem explorada por Freud.

               Lembrando de minha experiência noturna naquela viagem a Iguape, fico pensando se o casal da pensão, na sua simplicidade, não sabia de tudo isso. A erudição, afinal, não é uma forma complicada de dizer verdades simples? Nesse caso, será que sua discussão sobre a possível natureza de um personagem apavorante não era apenas uma gentileza para com o visitante, ao proporcionar-lhe uma história cheia de emoções? Não era isso que faziam aqueles viajantes árabes do deserto, trocando histórias entre si, no descanso dos oásis? O mestre do suspense cinematográfico, Hitchcock, não usou esse ardil para atrair plateias civilizadas à sala dos cinemas? Mas, por alguma razão que nunca consegui explicar, nem depois de minha oitiva do simpósio dos sábios, nem a suspeita sobre a possível amabilidade de meus hospedeiros da Botica, nem os ardis de Hitchcock apagaram em minha memória aquele tropel e gritos sinistros que ouvi (ou penso ter ouvido) no meio da noite, naquele quartinho de pensão, em Iguape.

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