segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

UMA VELHA CRÔNICA – Publicada no jornal Tribuna de Iguape



             HISTÓRIA (MEIO INVENTADA) DE IGUAPE

        Numa propriedade real portuguesa, bem abaixo da linha do Equador, alguns aventureiros desmazelados, aborrecidos por trabalhar muito e ganhar pouco no corte do pau encarnado, safaram-se dos patrões e junto com suas famílias se amoitaram numa praia deserta. Ali, a salvo do comando de reinóis, do risco de piratas e do peso dos cepos de pau, limparam o terreno, levantaram choças e ficaram matando o tempo, no bem-bom. Quando dava na telha, os homens pescavam peixes gordos e plantavam roças anêmicas. Pra matar o tempo, pitavam cigarros de barba-de-pau, enrolados em palha de milho. Quando preciso surravam os filhotes com vara de bambu. As mulheres, cantarolando pela metade músicas arcaicas, lavavam panelas de barro e panos de estamenha e pariam crianças raquíticas, enrugadas e choramingas; os velhos, sentados em tocos de árvores, tiravam baforadas azuladas do pito de barro, cuspinhavam nas formigas marchadeiras e resmungavam.

         Num dia incerto chegou a novidade: a terra não era mais lusitana, agora era castelhana, e ninguém podia continuar caranguejando pelas praias. Os aventureiros mandriões, as mulheres de cocoroque, as crianças de nariz sujo e os velhos rabugentos tiveram que sair da praia e partir para outras bandas, no meio do mato. Caminharam, suaram, praguejaram e, enfim, acharam um lugar pra moradia, atrás de um morro soberbo que tinha uma pedra no meio da fachada, feito olho de gigante, e perto de um rio que vinha de longe. Ali se assentaram, fincaram moirões, levantaram choupanas e tocaram a vida. 

          No correr dos anos, a planura vigiada pelo gigante de olho grande foi-se enchendo de gente e mais gente, que brotava da floresta braba e dos mares sem fim, feito andorinhas no verão. Mas o verão desse povo não era feito de sol quente, e sim de promessas de riqueza: no fundo do rio sonolento, brilhavam tesouros sem fim. E tome ferramentas pra cá e escravos pra lá, e começou a mariscagem de ouro. O lugarejo cresceu, um padre surgiu e decretou: “vila de gente cristã tem que ter igreja!”. Então levantaram a igreja numa praça e todos puderam rezar, batizar os piás e casar no lugar sagrado. Rezaram tanto e tão bem que, por artes milagrosas, a imagem de um Santo poderoso surgiu numa praia distante e foi trazida para a vila. Lavada e entronizada, a imagem se firmou de garantia dos cidadãos, nas suas agruras e combates.

          Isso durou um tempo, até que os homens de peso acharam que a igreja primeira era pequena demais para a importância do Santo milagroso e resolveram construir outra, maior. Assim que o Santo se viu bem tratado, começou a fazer milagres e mais milagres, em favor dos moradores e forasteiros. O ouro do rio, o arroz das roças e mais as providências do Santo fizeram a vila prosperar e tomar jeito. Surgiram casarões de pedra de dois andares, criaram-se clubes e teatros e refinaram-se os costumes.

          Mas, repetindo a desgraça de Babel, junto com o progresso veio o egoísmo, a vaidade e o desentendimento entre o povo e, aí, o Santo milagroso parou de ajudar: o ouro sumiu, o curuquerê comeu o arroz, a manjuba só dá pro gasto, proibiram a colheita do palmito e da cacheta e as querelas políticas fizeram o resto. A cidade de Iguape, com seus teatros, cinemas, indústrias e navios virou coisa do passado. Hoje em dia, a cada nova eleição, o povo reza pro Santo Milagroso, renovando suas esperanças na volta do Paraíso perdido.

 

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