Os
salões da Câmara dos Deputados foram poucos para abrigar, na semana passada, as
turbas atraídas pelo tráfico das legendas e dos mandatos comprados ou alugados
até à próxima infidelidade
por Roberto Amaral — publicado 09/10/2013
de
Transformada
em mafuá – com seus salões e seus gabinetes convertidos em covis da traficância
– a Câmara dos Deputados foi cenário adequado de um réquiem para um velho
morto, o sistema partidário brasileiro, que, na semana passada, concluiu seu
suicídio de décadas. Os salões e os gabinetes projetados por Niemeyer para o
fazer político foram poucos e pequenos para abrigar as turbas atraídas pelo
tráfico das legendas e dos mandatos, os leilões que ditavam a valia monetária
de mandatos conspurcados, comprados (ou alugados até à próxima infidelidade) ao
bater do martelo. Assim, em horas, foram construídos verdadeiros valhacoutos
tratados juridicamente como se partidos fossem, súcias sem caráter político,
sem programa, sem ideologia, sem nada, a não ser talões de cheque, promessas de
cargos e verbas.
Em nome
de um pragmatismo pedestre, a política é expulsa da política. Em poucas horas,
com a conivência de direções partidárias que jamais zelaram pela fidelidade de
seus quadros – imposta pelo STF-- mais de cinquenta deputados federais (um
tanto mais de deputados estaduais, vereadores e prefeitos) transferiram-se das
legendas pelas quais haviam sido eleitos, direções estaduais foram alugadas ou
cedidas mediante pregão, e assim, da noite para o dia, dos covis para a luz do
sol, surgem partidos caleidoscópios, sem cor alguma, porque contêm todas as
cores. Partidos papel em branco, capazes de aceitar toda e qualquer vontade,
todo e qualquer projeto, engenhos jurídico-burocráticos sem a menor
representatividade sociológica. Partidos nos quais os dirigentes são substituídos
por gerentes.
Diante da
recorrente inação legiferante do Congresso, e da omissão dos Partidos, o TSE,
em 2007, em decisão posteriormente confirmada pelo STF que abonou sua
constitucionalidade, reconheceu como pertencente ao Partido, e não ao eleito
(parlamentar chefe de executivo), o mandato popular.
Assim, ao desfiliar-se sem justa causa (v.g. perseguição
política), o titular perdia o mandato e não levava consigo o tempo
de televisão a que lhe correspondia, que ficavam, mandato e tempo de televisão
e Fundo Partidário, com o Partido pelo qual fôra eleito, a não
ser, entre outras, -- eis a janela aberta inventada para inutilizar
a regra--, na hipótese de nova agremiação.
Posteriormente,
decisão monocrática de um ministro do STF passou a admitir que o trânsfuga
levasse consigo, mesmo quando sua votação não houvesse atingido o quociente
eleitoral, além do mandato, o tempo de televisão, na contramão
do dispositivo legal que determina que, para os efeitos do cálculo do tempo de televisão
e da quota-parte do Fundo Partidário, que se considere a bancada na data da
instalação da Legislatura. Estava dada a senha para a fraude, a indústria do
partido novo, que permite os rearranjos sem risco de perda de mandado, e dá, ao
novo ‘partido’ a seiva de que carece para as tramóias de toda ordem, o tempo de
televisão, e os bons recursos do Fundo.
A
desmoralização do sistema de partidos e a criminalização da política, que podem
escrever o epitáfio da democracia, nutrem-se na falência do sistema eleitoral e
do sistema partidário. Isso é um óbvio cediço, e nem por isso convincente, pois
todos o repetem para permanecerem de braços cruzados. Reforma, reforminha,
agora, só em 2015 para valer para as eleições de 2016. Mas quem vai fazê-la? Os
parlamentares que, em sua maioria, serão prejudicados por qualquer
correção?
Com a autoridade que lhe sobra, o ministro Luís Roberto Barroso,
do STF (Valor. 6/10/2013), põe
de manifesto o que este escriba, e outros mais prestigiosos, vêm escrevendo
neste espaço eletrônico: “A reforma política enfrenta um impasse: o Congresso
Nacional, que é o lugar por excelência para conduzi-la, é composto de
parlamentares, por atores que não são neutros em relação às soluções que venham
a ser dadas. Todas as pessoas que estão lá serão diretamente afetadas por
qualquer mudança. Na prática, não se consegue produzir consenso”.
Como
desfazer esse nó górdio antes que ele estrangule a política?
A
alternativa, volta a falar o ministro, pode ser o Plebiscito sugerido pela
presidente Dilma e criticado à direita e à esquerda por aqueles muitos sabidos
que só aceitam as reformas quando feitas para que nada mude. Seria um
plebiscito, segundo entendo, mediante o qual o cidadão concederia poderes
constituintes ao próximo Congresso a ser eleito, para, por exemplo, no prazo de
um ano, elaborar as reformas, reformas indicadas na própria consulta, reformas
as quais, para evitar a burla, seriam confirmadas ou não mediante
referendo. O plebiscito seria convocado ainda em 2013 e
respondido juntamente com as eleições parlamentares de 2014. Mas, um
Congresso eleito nos termos dessa legislação e dos vícios de hoje poderá fazer
as reformas que o povo, exemplarmente paciente, pede nas ruas?
Poderemos,
porém, apostar todas as fichas da salvação da política numa reforma jurídico-legislativa
operada na cúpula, e, como necessariamente, à margem da sociedade infelicitada?
Qual reforma pode salvar de seu esvaziamento simbólico partidos sem vida,
desprovidos de conteúdo? Como trazer de volta à política partidos que
renunciaram à representação, que, dominados pela burocracia, optaram
pelo pragmatismo que mata a utopia?
Roberto Esposito (La Republica, 7/5/2012), antes de nosso
junho de 2013, perguntava: “Onde nasce essa desafeição que pervade
as nossas sociedades até a borda? O que afasta cada vez mais a linguagem dos
políticos daquele cruzamento de impulsos, emoções, esperanças que molda a nossa
experiência? E por que, talvez nunca como hoje, a onda longa da política parece
se inchar no tsunami da antipolítica”?
Serão
mesmo nossos partidos, os partidos brasileiros, em sua maioria,
suicidas, posto que a eles, por definição, não deveria interessar a
antipolítica que, promovida pelo seu auto-esvaziamento, terminará por
devorá-los? A verdade é que alguma coisa corrói, como caruncho, a maioria de
nossos partidos; algo os molesta, como uma psicose coletiva que os
leva a ceder a uma pulsão auto-destrutiva, na medida em que se apartam da
quimera coletiva e deixam de ser instrumento de realização dos sonhos e das
utopias que movem as massas.
No
Brasil, há um elemento a mais, que a irrupção de junho parecia haver espancado:
a permanente ausência do povo-massa, a síndrome da casa grande, onde reinam os
‘eleitos’ (pelos deuses) e a senzala, o Brasil real onde mora e trabalha o
povo, o povo objeto. Que sociedade representaria o sistema partidário (e
político e eleitoral) brasileiro, herdeiro de um autoritarismo larvar que se
expressa em todas as atividades sociais (a começar pelas relações familiares
mas que compreende as desigualdades sociais de gênero e cor, a homofobia e o
preconceito racial) e encontra seu refinamento nas relações políticas? Acerta
quem disser que é a nossa classe dominante, forânea, despida de valores
democráticos, rentista do erário, sem perspectiva de futuro, vivendo o hoje
pelo hoje, sem compromisso de nação e sem consciência de povo.
“Este artigo poderá ser reproduzido, desde que seja informada a
fonte: Carta Capital Online”.
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