Sistema partidário brasileiro: velhos vícios, novas alternativas
por Roberto Amaral — publicado 01/10/2013
Não está no número excessivo de partidos o problema principal da
democracia brasileira, mas na pobreza de organizações políticas dignas deste
nome no meio das diversas legendas partidárias.
A legislação
permissiva e o ambiente político institucional, leniente com a fraude, transformaram a criação de partidos políticos em uma
indústria caça-níqueis.
Não está no número
excessivo de partidos (hoje, 32), o problema crucial da democracia
representativa brasileira, mas em seu contrário: exatamente na pobreza de
organizações políticas dignas deste nome em meio ao cipoal de siglas sem
caráter.
Desse emaranhado
pouco se salva, se não tivermos o despudor de confundir esse instrumento
fundamental da democracia e da participação política com sua contrafação,
empresas comerciais criadas, com lamentável amparo na lei, para vender tempo de
televisão. Mas essas arapucas surgem, e sobrevivem, eis a tragédia, graças à
degradação ética da política brasileira, da qual são lamentável e justo exemplo
os vícios que permeiam nossa vida parlamentar, e o troca-troca de legendas.
Pois são os chamados grandes ‘partidos’ -- aquela meia-dúzia de três ou quatro
bandeiras, senhoras hoje da vida nacional -- que têm impedido um mínimo de
reforma da legislação eleitoral, uma vez que o projeto de cada um (portanto, de
cada um de seus deputados e senadores)
é o da sua própria preservação no
poder, isto é, na negociação de verbas, no preenchimento de carguinhos, cargos
e cargões. No caso dos parlamentares, a renovação de seus mandatos, cada vez
mais cara.
O que é um partido
político? Deve ser, antes de tudo, uma organização de pessoas unificadas em
torno de um projeto de poder, que, por seu turno, pressupõe uma específica
visão de mundo e de sociedade, descrita em seu Programa, ao qual se subordinam
todos os filiados e, acima de tudo, seus representantes no exercício de seus
respectivos mandatos. Deve, pois, ser, uma representação de interesses sociais,
políticos, econômicos, doutrinários, em síntese, um interesse de classe, ou,
com um máximo de concessão, de um segmento de classe. Não pode ser, portanto,
um ajuntamento aleatório unificado apenas por interesses eleitorais individuais
momentâneos. O objetivo do partido, nas democracias participando do processo
eleitoral, é conquistar o Poder, e nele conservar-se, para realizar seu
Programa. O que isso tem a ver com o atual cenário brasileiro? Como classificar
as antigas e novas siglas, como essas que acabam de ter seus registros aprovados? Um 'partido' que se põe à venda pelas páginas dos jornais e
entrevistas de seu ‘dono’, sim, porque
cada uma dessas siglas tem seu proprietário, quotista majoritário? Ou um
partido que já nasce sob pesadas
acusações de fraude? Que dizer dos partidos-confederações, reunião aleatória de autarquias estaduais
cujo único elo é o apego ao Erário?
A legislação
permissiva (produto do conluio dos chamados grandes ‘partidos’), e o ambiente
político institucional, leniente com a fraude, transformaram a criação de
partidos políticos em uma indústria
caça-níqueis, que permite a qualquer anônimo montar sua empresa, como antes os
bicheiros instalavam a banquinha da traficância. Mas são os grandes ‘partidos’
que estimulam a infidelidade, transacionando entradas e saídas de parlamentares
como permuta, e negociando mesmo novas siglas para amparar dissidências
regionais. Surgem ‘partidos’ de toda ordem, como os partidos ‘reserva’ que os
oligarcas controlam para neles despejar
candidatos impróprios à sigla principal (esse, por exemplo é o papel do PSD, cuja
criação foi estimulada por grandes partidos que apostavam em futuras
coligações), aumentar o tempo de televisão mediante coligações, duplicar o
número de candidatos proporcionais e assim sua possibilidade de eleição de
deputados e vereadores, e, não menos importante..., participar do fundo partidário.
Some-se a isso a
larga tradição brasileira de partidos de fancaria, sem fundamentação
doutrinária, sem enraizamento popular ou base em interesse de classe, sem
unidade político-ideológica, vícios estampados nas coligações eleitorais de
contrários, nas alianças espúrias, na preeminência do poder econômico ou
corporativo como fator de seleção de candidatos. Feitas algumas poucas
exceções, os partidos políticos, no Brasil, são, de tradição, indiferenciados, como os Partidos Conservador
e Liberal do Império, ou sem raiz popular, como o Partido Republicano que em
nada contribuiu para o 15 de novembro de 1889. Como se vê, a maldição vem de
longe, e prossegue com os partidos-clãs, regionais, da República Velha e no
vazio do Estado Novo, para finalmente, após o regime da Constituição de 1946,
serem destroçados pela ditadura militar. Nossos atuais partidos, portanto, são
todos ainda jovens, filhos da última redemocratização. O liame que poderia ser
oferecido pela permanência do PCB, nascido em 1922 e sobrevivente nas diversas
clandestinidades, se esboroou com seu suicídio moral e ideológico ao findar-se
no PPS, nada obstante a heróica resistência dos que ficaram com Horácio Macedo,
Zuleide Faria de Melo e Ivan Pinheiro. Por força dessa má tradição, por força
do presidencialismo, por força disso e daquilo, são nossos partidos, no geral,
menos organizações de classe (nesse sentido o verdadeiro partido, órgão da
classe dominante, é a grande imprensa) e mais partidos de indivíduos,
dependentes cada um de um líder messiânico e assim vão variando no poder
conforme variam os líderes: Getúlio, Lacerda, Juscelino, Jânio, Jango, Brizola,
Lula...
O sistema
brasileiro de partidos está falido e se não for imediatamente corrigido, isto
é, passado a limpo, poderá, em sua derrocada, levar consigo a democracia.
Há o que fazer, mas
como fazê-lo com os grandes ‘partidos’, PMDB à frente, bloqueando as reformas?
Por que todo mundo e todos os partidos, todos os líderes políticos, todos os
comentaristas, governo e oposição, ou seja, toda gente é a favor da reforma
eleitoral e ela, no entanto, não sai? Por que em todo ano eleitoral se discute
uma reforma eleitoral que ninguém quer aprovar? Porque fala acima de tudo o
instinto de sobrevivência do parlamentar eleito sob o sistema viciado, o qual,
corrigido, certamente impedirá sua reeleição, e a única função do mandato
eletivo, na maior parte dos casos, é
assegurar, de formas as mais variadas, o mandato seguinte. Fala acima de tudo o consórcio que domina as
duas Casas do Congresso, e assim controla parcela significativa do Poder, do
qual se alimentam como cracas insaciáveis.
A organização de
partidos deve ser livre, condicionada, porém, a participação no Fundo
Partidário e no rateio do tempo de televisão, ao desempenho eleitoral. Tire-se-lhe
essa benesse como conquista automática, e a indústria imediatamente cessará.
O voto de legenda é
fundamental como um antídoto às siglas de aluguel, tanto quanto fundamental é a
lista pré-ordenada de candidatos complementada com o financiamento público e
exclusivo de campanha. Esta não pode reduzir-se a uma disputa entre
marqueteiros e publicitários despolitizados e despolitizantes, disputando quem
faz o melhor programa de televisão, como ‘melhor’ entendido aquele que melhor
puder influenciar, isto é manipular, a manifestação da cidadania. Troquem-se os
programas hollywoodianos por debates políticos ao vivo, coíba-se a produção
marqueteira, capaz de milagres.
Nenhuma dessas
conquistas, porém, nos será concedida nas próximas eleições, como igualmente
não nos será dado avançar na democracia participativa. Resta-nos, tão
simplesmente, como sempre ocorre nos anos que as antecedem, esperar por uma
futura reforma a ter vigência numa futura eleição. Esperemos, agora que
possamos fazer a reforma para as eleições de 2016 ou 2018, ou...
Sonhemos.
Institua-se e
facilite-se a revogação popular de
mandatos, pratiquem os partidos, o princípio da fidelidade (Na ausência
legiferante do Congresso, o instituto foi adotado por decisão do STF, e vem
sendo seguidamente defraudado pelas transações das cúpulas partidárias,
coniventes com as deserções). Institua-se a limitação de mandatos sucessivos e
revogue-se a reeleição de titulares do Poder Executivo. Condicione-se a
participação de parlamentares em funções executivas à prévia renúncia de seus
mandatos e unifiquem-se as eleições em um só ano.
Diante da
democracia representativa, terminal, avance-se com os institutos da democracia
participativa, como o referendo e o plebiscito
(já previstos em nossa Constituição mas que precisam ser aplicados com
frequência), facilite-se a iniciativa legislativa popular, também já amparada
pela Carta de 1988, institua-se o
direito de revogação, individual ou coletiva,
ensejando à cidadania, no primeiro caso, pôr termo ao mandato de um
parlamentar ou chefe de poder executivo, e, na segunda hipótese, cassar o
mandato de toda uma assembleia, institua-se o mandato imperativo, e,
finalmente, o veto, a faculdade que permite ao cidadão impedir a vigência de
medida administrativa, ou de lei, em vias de execução.
Mas, como fazer
tudo isso ou algo disso com o atual Congresso, ou com um Congresso eleito
segundo o modelo vigente, viciado, infenso a qualquer reforma que o prejudique?
É ela a proposição de plebiscito para que o povo aprove a atribuição de poderes
constituintes ao Congresso que vier a ser eleito (quando não sei)
exclusivamente para promover a reforma política. Assim, o Congresso, reunido
unicameralmente, deliberará por maioria absoluta e não pelos 3/5, o que
possibilitará quebrar as resistências que os grandes partidos a ela opõem.
“Este artigo poderá ser reproduzido livremente desde que seja
informada a fonte: Carta Capital Online”
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