A REVANCHE
"...este Bacharel
havia 30 anos que estava degradado nesta terra;"
Pela informação que della deo ao Capitão I.. mandou a Pero
Lopes com 80 homens que fosse descobrir pela serra dentro; porque o dito
Francisco de Chaves se obrigava que em 10 meses tornara ao dito porto com 400
escravos carregados de prata e ouro.
- Do diário de navegação de Pero
Lopes de Souza – In "Iguape...Nossa História" – pg. 42 - Vol. 1 –
2000 - Roberto Fortes
Devo confessar que não fiz esta
longa e dolorosa viagem por minha própria vontade, já que as correntes que me
prendiam não me deixaram alternativa. Mas, quando nascemos, não recebemos de
Deus nenhum mapa ou roteiro de vida pelo qual devemos nos orientar. Ele nos deu
a inteligência e apenas alguns preceitos simples para regular nossa vida.
Quanto ao destino mais amplo, temos que descobrir por conta própria o que
podemos, o que não podemos e, quando nos permitem a escolha, o que devemos
fazer, quando e onde. No porão da caravela que me trouxe, sofri durante três meses
mais do que nos dois anos, na prisão, em Lisboa. Também é
verdade que o comandante me mandou largar numa praia deserta, para que talvez
eu morresse longe de seus olhos e de seu incerto sentimento cristão. Os juízes
da Inquisição, os obesos bispos que decidem sobre a vida e a morte daqueles que
são considerados a "praga", a "escória", após o julgamento
mandam entregar o réu ao "braço secular", e lavam as mãos, como Pilatos
e, como este, sabem, antecipadamente, dos horrores que esperam o condenado,
seja na tortura dos cárceres, seja na ardente fogueira. Felizmente, na minha
condição de veterano das guerras lusitanas, nos confins das Índias, mereci a
caridade de ser deixado nas praias desta inóspita colônia portuguesa, ao sabor
do destino, seja para sofrer de morte violenta, nas mãos dos silvícolas ou, por
compaixão divina, morrer de inanição, nas suas praias desertas.
Não é fácil
suprir as necessidades físicas num ambiente selvagem e desconhecido. A respeito
das necessidades morais já não há o que se diga. Mas se os animais, sem o lume
da razão, conseguem, por que eu não o conseguiria? Tive a sorte de encontrar
alguns europeus que me orientaram e facilitaram minha vida junto aos naturais,
aos quais me aliei no combate a tribos hostis. Acabei sendo assimilado como um
deles, já que os igualava em
bravura. Esta condição não só me ajudou a sobreviver, como
deu um novo sentido à minha vida, ainda que nestas rústicas condições. Meus
conhecimentos me ajudaram a consolidar a amizade com os silvícolas e os
europeus que, sabendo de meus antecedentes, me tratam como o
"Bacharel", lisonja que aceito, por justiça e porque me faz mais respeitável entre eles. Na verdade, meus
conhecimentos do trívium e do quadrívium me habilitam a reivindicar o título,
embora tenha frequentado por pouco tempo a Universidade. Não pude terminar meus
estudos porque meu temperamento e minha franqueza eram incompatíveis com a
disciplina da escola e a hipocrisia dos monjes. Entretanto, minha real desgraça
só aconteceu quando uma investigação traiçoeira revelou a origem de meus
ancestrais. Mas tudo isso está enterrado no passado. Resolvi recomeçar a vida
neste mundo novo, esquecendo o que outrora fui e desejei.
Aqui neste
morrete, respirando a brisa que vem do mar, faço esta rememoração e um exame de
consciência, após os últimos acontecimentos que abalaram minha rotina e
remexeram no meu passado. Apesar de ter sido tratado com adequada cortesia pelo
Capitão Martim Afonso, nesta sua viagem à Terra de Santa Cruz, não me arrependo
de deixá-lo perder seus homens nessa aventura insensata, pelo interior desta
terra para eles desconhecida. Oitenta homens lançados a uma aventura sem volta,
oitenta filhos ou pais de família, que logo farão parte da lista interminável
daqueles que se perderam por causa da ambição de seus chefes. Não fui eu quem
os estimulei a fazer essa excursão para a morte. Mas não os dissuadi, nem
avisei o Capitão sobre os perigos que enfrentariam. Foram homens como esses que
me jogaram numa masmorra e, depois, me depositaram, a ferros, num navio rumo ao
desconhecido. Eu sei que não são os mesmos, mas isso é apenas uma
particularidade, pois, se fosse o caso, não teriam um comportamento diferente.
Eu sei também que eles apenas cumprem o seu dever. Entretanto quem assume uma
função, tem que aceitar suas consequências, boas ou más. Os soldados do Rei
(sejam quais foram eles) cumpriram sua missão, submetendo-me à tortura do
cárcere, à incerteza dos mares e aos riscos de uma terra desconhecida. Mas eu
sobrevivi a esses padecimentos e mantive aceso o rancor dos injustiçados. Agora
minha alma vai descansar porque o acaso me permitiu dar uma resposta conveniente aos meus carrascos.
Levei trinta anos para perfazer essa revanche, mas ela compensou o tempo de
espera.
Nenhum comentário:
Postar um comentário