domingo, 20 de abril de 2014

FICÇÃO -


                                 A REVANCHE                                                            

"...este Bacharel havia 30 anos que estava degradado nesta terra;"

Pela informação  que della deo ao Capitão I.. mandou a Pero Lopes com 80 homens que fosse descobrir pela serra dentro; porque o dito Francisco de Chaves se obrigava que em 10 meses tornara ao dito porto com 400 escravos carregados de prata e ouro.

               - Do diário de navegação de Pero Lopes de Souza – In "Iguape...Nossa História" – pg. 42 - Vol. 1 – 2000 - Roberto Fortes

 

Devo confessar que não fiz esta longa e dolorosa viagem por minha própria vontade, já que as correntes que me prendiam não me deixaram alternativa. Mas, quando nascemos, não recebemos de Deus nenhum mapa ou roteiro de vida pelo qual devemos nos orientar. Ele nos deu a inteligência e apenas alguns preceitos simples para regular nossa vida. Quanto ao destino mais amplo, temos que descobrir por conta própria o que podemos, o que não podemos e, quando nos permitem a escolha, o que devemos fazer, quando e onde. No porão da caravela que me trouxe, sofri durante três meses mais do que nos dois anos, na prisão, em Lisboa. Também é verdade que o comandante me mandou largar numa praia deserta, para que talvez eu morresse longe de seus olhos e de seu incerto sentimento cristão. Os juízes da Inquisição, os obesos bispos que decidem sobre a vida e a morte daqueles que são considerados a "praga", a "escória", após o julgamento mandam entregar o réu ao "braço secular", e lavam as mãos, como Pilatos e, como este, sabem, antecipadamente, dos horrores que esperam o condenado, seja na tortura dos cárceres, seja na ardente fogueira. Felizmente, na minha condição de veterano das guerras lusitanas, nos confins das Índias, mereci a caridade de ser deixado nas praias desta inóspita colônia portuguesa, ao sabor do destino, seja para sofrer de morte violenta, nas mãos dos silvícolas ou, por compaixão divina, morrer de inanição, nas suas praias desertas. 

            Não é fácil suprir as necessidades físicas num ambiente selvagem e desconhecido. A respeito das necessidades morais já não há o que se diga. Mas se os animais, sem o lume da razão, conseguem, por que eu não o conseguiria? Tive a sorte de encontrar alguns europeus que me orientaram e facilitaram minha vida junto aos naturais, aos quais me aliei no combate a tribos hostis. Acabei sendo assimilado como um deles, já que os igualava em bravura. Esta condição não só me ajudou a sobreviver, como deu um novo sentido à minha vida, ainda que nestas rústicas condições. Meus conhecimentos me ajudaram a consolidar a amizade com os silvícolas e os europeus que, sabendo de meus antecedentes, me tratam como o "Bacharel", lisonja que aceito, por justiça e porque me faz  mais respeitável entre eles. Na verdade, meus conhecimentos do trívium e do quadrívium me habilitam a reivindicar o título, embora tenha frequentado por pouco tempo a Universidade. Não pude terminar meus estudos porque meu temperamento e minha franqueza eram incompatíveis com a disciplina da escola e a hipocrisia dos monjes. Entretanto, minha real desgraça só aconteceu quando uma investigação traiçoeira revelou a origem de meus ancestrais. Mas tudo isso está enterrado no passado. Resolvi recomeçar a vida neste mundo novo, esquecendo o que outrora fui e desejei.

            Aqui neste morrete, respirando a brisa que vem do mar, faço esta rememoração e um exame de consciência, após os últimos acontecimentos que abalaram minha rotina e remexeram no meu passado. Apesar de ter sido tratado com adequada cortesia pelo Capitão Martim Afonso, nesta sua viagem à Terra de Santa Cruz, não me arrependo de deixá-lo perder seus homens nessa aventura insensata, pelo interior desta terra para eles desconhecida. Oitenta homens lançados a uma aventura sem volta, oitenta filhos ou pais de família, que logo farão parte da lista interminável daqueles que se perderam por causa da ambição de seus chefes. Não fui eu quem os estimulei a fazer essa excursão para a morte. Mas não os dissuadi, nem avisei o Capitão sobre os perigos que enfrentariam. Foram homens como esses que me jogaram numa masmorra e, depois, me depositaram, a ferros, num navio rumo ao desconhecido. Eu sei que não são os mesmos, mas isso é apenas uma particularidade, pois, se fosse o caso, não teriam um comportamento diferente. Eu sei também que eles apenas cumprem o seu dever. Entretanto quem assume uma função, tem que aceitar suas consequências, boas ou más. Os soldados do Rei (sejam quais foram eles) cumpriram sua missão, submetendo-me à tortura do cárcere, à incerteza dos mares e aos riscos de uma terra desconhecida. Mas eu sobrevivi a esses padecimentos e mantive aceso o rancor dos injustiçados. Agora minha alma vai descansar porque o acaso me permitiu dar uma  resposta conveniente aos meus carrascos. Levei trinta anos para perfazer essa revanche, mas ela compensou o tempo de espera.  

 

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