PODER POLÍTICO E OSTENTAÇÃO
Num ensaio inserido em “A Invenção das Tradições”, de Eric Hobsbawm e
Terence Ranger (Saraiva – Trad. Celina Cardim Cavalcante), David Cannadine
discorre sobre os rituais da monarquia britânica, no período 1820-1977. O autor
começa pela citação de um furibundo texto de 1820, não por acaso intitulado
“The Black Book”, que ridicularizava o “desfile de coroas de reis e de nobres,
de chaves de ouro, cetros, bastões brancos e negros”, etc., finalizando por
pregar que todos esses luxos “ficam ridículos quando os homens se tornam
esclarecidos, quando aprendem que o verdadeiro objetivo do governo é conceder
ao povo o máximo de felicidade com o mínimo de gastos”.
Passados mais de um século e meio, no entanto, percebe-se a inutilidade
daquela pregação revolucionária: a monarquia britânica, não obstante os
percalços familiares – o drama de um príncipe que relutou em trocar sua amante
de escassa beleza por uma esposa de inegável encanto e gentileza, que se
tornou, graças à imprensa, objeto de admiração e afeto mundiais, embora sua
vida tenha se encerrado numa tragédia de lances vulgares – continua ostentando
seus esplendores, agora ainda mais animados por um casal de virtuais
continuadores da realeza, que parece ter surgido de um conto de fadas.
Por conta da memória e da imaginação, essa leitura nos impeliu a um
“acrobático” paralelo entre aqueles ritos setentrionais (ah! O mundo
desenvolvido!) e seus simulacros meridionais (o pitoresco mundo tropical!), numa
tentativa de compreender, para aceitar, que, embora a vida não seja “feita de
festivais”, recobrir de fantasias os pobres fatos e atos humanos é uma maneira
de melhorar seus significados, valorizando nossa vida por tabela.
Mas, enfim, indo direto ao ponto, malgrado sua localização num obscuro
escaninho do mundo subdesenvolvido, admirem-se as gerações mais jovens, Iguape
já teve seus dias de esplendor aristocrático, com uns laivos palacianos, embora
sob bandeira e rituais republicanos, na esteira do poder político. Mas já se
sabe, e sabe-o o leitor, que, ao contrário do que acontece na “velha Albion”,
onde persiste a periódica repetição de nobres rituais, em Iguape os brilhos
aristocráticos e as pretensões palacianas dos velhos políticos feneceram, logo
após a Grande Guerra e a queda da ditadura paternalista de Getúlio Vargas.
Explicando melhor: o esplendor aristocrático em Iguape (que inserido no
tempo histórico teve a duração relativa de um “fogo fátuo”) foi uma
consequência do casamento “arranjado” entre a ditadura de Getúlio Vargas e os
herdeiros “angavas” (termo de exclusivo uso iguapense) da nobreza arrozeira que
abandonou a cidade, quando o curuquerê destruiu as lavouras locais. Como em
Iguape não havia carruagens pomposas para os desfiles consagradores (tais como
os da realeza britânica), a exposição enobrecedora se fazia nos bailes de um
clube social, estrategicamente localizado no andar superior do mais elegante
edifício do centro da cidade, que se denominou Clube XV, ainda que o número
característico da República, por força do golpe getulista, estivesse esvaziado
de seu sentido simbólico.
O “desfile”, por assim dizer, dos nossos “nobres” e das pessoas gradas
que os rodeavam, se realizava nas danças de salão, nos grupos de conversa e nas
sacadas do prédio, estrategicamente voltadas para a calçada lateral da Igreja
vizinha, onde se aglomerava o povo, que admirava e prestigiava a exibição e a
autoafirmação da “elite” de sua cidade. Era comovente perceber a persistência e
a fidelidade desse culto silencioso dos cidadãos à “nobreza” da terra, cuja
ascendência sobre as pessoas comuns não as humilhava, mas lhes trazia o orgulho
da pertinência a uma malha social coesa e graduada.
Naturalmente, naquele tempo não
se esclarecia, por pudor, por delicadeza ou por conveniência, que esse “olimpo”
local só existia por força de compromissos de submissão à trama política
nacional que sustentava a ditadura do Estado Novo getulista. O idioma
ritualístico, o cerimonial, o espetáculo eram cópias um pouco descoradas de
festas das antigas linhagens da nobreza, mas a sua base de sustentação era a
trama política, derivada de alianças, de mútuo interesse, entre o desejo de
manter a ordem, que vinha de cima, e a busca de prestígio e poder locais.
O fim da ditadura getulista, como
era de se esperar, desfez o “castelo de cartas” da nobreza iguapense. Seu ponto
de referência mudou o nome para “Clube 25 de Janeiro” e foi perdendo seu ranço
aristocrático, acompanhando a quase inconsciente democratização da cidade. Mas
o ressentimento de antigos marginalizados só estava aguardando o momento
oportuno para explodir. E ele chegou com o incêndio do prédio do “Clube 25 de
Janeiro”, desastre que representou, com alguma licença literária, uma espécie
de “queda da Bastilha tropical”, o início da ruína das bases de sustentação político-social
da elegância e do poder das antigas elites, anunciando seu próximo réquiem. Uma
nova ordem sócio-política se impunha ao país e, por via das consequências, à
nossa cidade. Os novos “donos do poder” de Iguape não se preocuparam mais em
conquistar seu prestígio nos salões de clubes que, por sinal, baixaram seu
perfil de classe, mas saíram em busca do apoio popular nas ruas, nos bairros
humildes, na zona rural, cujos habitantes foram despertados de seu sono de
submissão e convocados para a construção de um mundo utópico de pretensões
igualitárias.
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