segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Para quem não leu TRIBUNA DE IGUAPE - Novembro


 

       PODER POLÍTICO E OSTENTAÇÃO

                                                                       

           Num ensaio inserido em “A Invenção das Tradições”, de Eric Hobsbawm e Terence Ranger (Saraiva – Trad. Celina Cardim Cavalcante), David Cannadine discorre sobre os rituais da monarquia britânica, no período 1820-1977. O autor começa pela citação de um furibundo texto de 1820, não por acaso intitulado “The Black Book”, que ridicularizava o “desfile de coroas de reis e de nobres, de chaves de ouro, cetros, bastões brancos e negros”, etc., finalizando por pregar que todos esses luxos “ficam ridículos quando os homens se tornam esclarecidos, quando aprendem que o verdadeiro objetivo do governo é conceder ao povo o máximo de felicidade com o mínimo de gastos”. 

           Passados mais de um século e meio, no entanto, percebe-se a inutilidade daquela pregação revolucionária: a monarquia britânica, não obstante os percalços familiares – o drama de um príncipe que relutou em trocar sua amante de escassa beleza por uma esposa de inegável encanto e gentileza, que se tornou, graças à imprensa, objeto de admiração e afeto mundiais, embora sua vida tenha se encerrado numa tragédia de lances vulgares – continua ostentando seus esplendores, agora ainda mais animados por um casal de virtuais continuadores da realeza, que parece ter surgido de um conto de fadas.

           Por conta da memória e da imaginação, essa leitura nos impeliu a um “acrobático” paralelo entre aqueles ritos setentrionais (ah! O mundo desenvolvido!) e seus simulacros meridionais (o pitoresco mundo tropical!), numa tentativa de compreender, para aceitar, que, embora a vida não seja “feita de festivais”, recobrir de fantasias os pobres fatos e atos humanos é uma maneira de melhorar seus significados, valorizando nossa vida por tabela.

            Mas, enfim, indo direto ao ponto, malgrado sua localização num obscuro escaninho do mundo subdesenvolvido, admirem-se as gerações mais jovens, Iguape já teve seus dias de esplendor aristocrático, com uns laivos palacianos, embora sob bandeira e rituais republicanos, na esteira do poder político. Mas já se sabe, e sabe-o o leitor, que, ao contrário do que acontece na “velha Albion”, onde persiste a periódica repetição de nobres rituais, em Iguape os brilhos aristocráticos e as pretensões palacianas dos velhos políticos feneceram, logo após a Grande Guerra e a queda da ditadura paternalista de Getúlio Vargas.

            Explicando melhor: o esplendor aristocrático em Iguape (que inserido no tempo histórico teve a duração relativa de um “fogo fátuo”) foi uma consequência do casamento “arranjado” entre a ditadura de Getúlio Vargas e os herdeiros “angavas” (termo de exclusivo uso iguapense) da nobreza arrozeira que abandonou a cidade, quando o curuquerê destruiu as lavouras locais. Como em Iguape não havia carruagens pomposas para os desfiles consagradores (tais como os da realeza britânica), a exposição enobrecedora se fazia nos bailes de um clube social, estrategicamente localizado no andar superior do mais elegante edifício do centro da cidade, que se denominou Clube XV, ainda que o número característico da República, por força do golpe getulista, estivesse esvaziado de seu sentido simbólico.

            O “desfile”, por assim dizer, dos nossos “nobres” e das pessoas gradas que os rodeavam, se realizava nas danças de salão, nos grupos de conversa e nas sacadas do prédio, estrategicamente voltadas para a calçada lateral da Igreja vizinha, onde se aglomerava o povo, que admirava e prestigiava a exibição e a autoafirmação da “elite” de sua cidade. Era comovente perceber a persistência e a fidelidade desse culto silencioso dos cidadãos à “nobreza” da terra, cuja ascendência sobre as pessoas comuns não as humilhava, mas lhes trazia o orgulho da pertinência a uma malha social coesa e graduada.

              Naturalmente, naquele tempo não se esclarecia, por pudor, por delicadeza ou por conveniência, que esse “olimpo” local só existia por força de compromissos de submissão à trama política nacional que sustentava a ditadura do Estado Novo getulista. O idioma ritualístico, o cerimonial, o espetáculo eram cópias um pouco descoradas de festas das antigas linhagens da nobreza, mas a sua base de sustentação era a trama política, derivada de alianças, de mútuo interesse, entre o desejo de manter a ordem, que vinha de cima, e a busca de prestígio e poder locais.

              O fim da ditadura getulista, como era de se esperar, desfez o “castelo de cartas” da nobreza iguapense. Seu ponto de referência mudou o nome para “Clube 25 de Janeiro” e foi perdendo seu ranço aristocrático, acompanhando a quase inconsciente democratização da cidade. Mas o ressentimento de antigos marginalizados só estava aguardando o momento oportuno para explodir. E ele chegou com o incêndio do prédio do “Clube 25 de Janeiro”, desastre que representou, com alguma licença literária, uma espécie de “queda da Bastilha tropical”, o início da ruína das bases de sustentação político-social da elegância e do poder das antigas elites, anunciando seu próximo réquiem. Uma nova ordem sócio-política se impunha ao país e, por via das consequências, à nossa cidade. Os novos “donos do poder” de Iguape não se preocuparam mais em conquistar seu prestígio nos salões de clubes que, por sinal, baixaram seu perfil de classe, mas saíram em busca do apoio popular nas ruas, nos bairros humildes, na zona rural, cujos habitantes foram despertados de seu sono de submissão e convocados para a construção de um mundo utópico de pretensões igualitárias. 

 

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