Foi numa tarde qualquer e o papo seguia
sem rumo prévio: música, política, velhas lembranças. Não sei a propósito de
quê, mas, no vai-e-vem da conversa, Orlandinho revelou:
- Quando eu era criança, brincava num
chafariz, atrás da Basílica.
- Chafariz atrás da Basílica?
Interessante, não lembro disso!
- É, mas eu lembro. Eu morava ali mesmo
na praça e brincava ao redor desse chafariz, que ficava bem perto de casa.
Assenti provisoriamente com a revelação
e, por algum tempo, fiquei preocupado com essa minha inexplicável amnésia. Por
fim, me conformei. A memória é mesmo uma coisa caprichosa. Quem já não foi
trapaceado por ela? Quem não foi sacaneado por aquele “branco” súbito que ataca
nos piores momentos, quando você precisa lembrar o nome do velho amigo que
aparece inesperadamente, ou daquele remédio milagroso que curou sua enxaqueca?
Mesmo levando isso
em conta, nas horas vagas andei catando imagens esparsas de tempos passados,
relembrei aquelas corrimaças de infância pelas ruas de poeira e lama da antiga
Iguape. Repassei cuidadosamente o tempo e o espaço daquelas brincadeiras.
Lembrei até das imagens infantis de meus companheiros, hoje sisudos senhores,
os que escaparam do inexorável alfanje. Entretanto, por mais que eu aquecesse
os neurônios, a imagem do chafariz teimava em não aparecer. A esperança era
apelar para outras testemunhas. Zizi, da mesma geração do Orlandinho,
estranhou:
- Eu morava bem ali, no sobrado, atrás
da Basílica, mas não lembro de nenhum chafariz!
Diminuí um pouco a desconfiança com
minha memória, mas percebi que estava surgindo um grande mistério. Voltei a
interrogar Orlandinho, expondo, com muito tato, as dúvidas da Zizi. Orlandinho,
conciliador, ponderou:
- É uma opinião respeitável, mas eu
tenho certeza de que havia um chafariz naquele local!
Diante dessa convicção implacável, para
o sim ou para o não, o jeito era buscar mais testemunhas. Afinal, até Cristo
precisou de quatro evangelistas para comprovar suas palavras e seus milagres!
Mal comparando, para ter certeza a respeito de um chafariz perdido no tempo,
talvez eu precisasse consultar umas dez pessoas. Procurei o Liquinho. Ele
deveria se lembrar do local, ainda mais que foi um moleque andarilho, caçador
de passarinhos e de novidades. Encontrei-o descendo na direção do antigo
mercado. Parecia preocupado.
- Algum problema?
- Não, é que só corri 5 quilômetros,
pela manhã, estou em dívida com minhas pernas. Vou andar um pouco na Baixada,
pra compensar.
- Ainda que mal pergunte, você tem
lembrança ou viu alguma fotografia de um chafariz que havia atrás da Basílica?
- Não, mas em compensação tenho uma fotografia
do chafariz do Largo do Rosário, onde estou com vários amigos. Era uma turminha
boa, mas de pouca resistência. Éramos onze e dez morreram. A única prova de que
a foto é autêntica sou eu...
Tive que prosseguir nas buscas. Num
encontro casual com o Nesi, na porta do Correio, pedi notícias do chafariz. Ele
me fez uma revelação surpreendente:
- Havia um chafariz no meio da rua, que
depois foi transferido para os fundos da Basílica, no espaço cercado pelo
murinho.
Como era a primeira vez que ouvia falar
nessa transferência, busquei outras evidências. Apelei para o livro do
historiador Roberto Fortes, amplo repositório de lembranças iguapenses. Ali
tive notícias de que havia, sim, um chafariz no local indicado, no meio da praça,
só que fora retirado em 1921, pelo prefeito Floramante Giglio. Nenhuma notícia
sobre sua transferência. Como que a dar maior veracidade à extinção do
chafariz, ficou registrado um epigrama que mexia com a pequena estatura do
prefeito:
“Nosso prefeito que apenas/ Não foi
grande por um triz/ Detesta as coisas pequenas/ Por exemplo: um chafariz!”
Nessas alturas, o chafariz contemplado
por Orlandinho estava me parecendo uma espécie de continente da Atlântida, do
qual se têm notícias, mas nenhuma prova concreta de sua existência. Continuei
minha pesquisa, buscando depoimentos de pessoas mais antigas. Interrogada,
Lourdes não titubeou:
- Tinha um chafariz ali, sim. A gente
brincava de mãe-a-mãe, em volta dele...
Ponto para Orlandinho, ponto para Nesi,
ameaça de pênalti em Zizi. Mas, já que eu tinha mexido com testemunhas mais
antigas, resolvi consultar o livro de Paulo de Avelar, “Largo de São Benedito”,
de 1989. Paulo de Avelar, para quem não sabe, é o pseudônimo de José Boaventura
Barbosa, o Zuzu, autor de vários livros de memórias sobre a cidade.
A obra acima citada tem um capítulo
especialmente dedicado aos chafarizes de Iguape. “No meu tempo de juventude”,
começa ele, que nasceu em 1916, “conheci quatro desses chafarizes”. E
especifica mais adiante os locais onde eles se encontravam: Largo da
Misericórdia, Funil de Cima, Largo do Rosário e Largo de São Benedito. Nenhuma
palavra sobre o chafariz atrás da Basílica, que por sinal ainda não era
Basílica, mas apenas Igreja Matriz.
Depois das informações acima, Paulo de
Avelar narra uma conversa que teve com o seu Carlos, na qual este lhe contou
que, quando moço, abastecia sua casa com água retirada no chafariz do Largo do
Rosário. Uma informação perfunctória, mas enfim, toca no assunto. Continuei a
perquirir. Numa manhã de domingo, trocando idéias na “Boca Maldita”, o reduto
de fofocas, falei com Plínio, a respeito do chafariz misterioso. Sua resposta
foi segura e tranqüila:
- No bar do Marcos, há uma foto desse
chafariz.
No dia seguinte lá estava eu no bar do
Marcos. Consegui uma cópia da fotografia do esquivo chafariz. Estava
comprovado. O mistério tinha sido elucidado. Fiquei satisfeito, mas por pouco
tempo. Alguém mais observador me alertou:
- Não há nenhum poste de luz na praça.
Essa fotografia é de antes de 1920, ano em que a luz elétrica chegou a Iguape.
Pronto. Começava outra vez o mistério!
Estava suspenso o pênalti contra Zizi. Parafraseando Vinícius de Morais,
Orlandinho que me perdoe, mas uma fotografia datada é fundamental. Parecia que
a história ia parar por aí, mas aconteceu algo sensacional. De tanto pensar no
assunto, acabei sonhando com ele. No sonho, eu estava de pé, atrás da Igreja
Matriz, ao lado do danado do chafariz, uma peça de rara beleza, com pedestal de
mármore rajado, torneira de cobre brilhante, encimada por uma torrinha
esculpida em pedra. Eu estava voltado para o lado da praça que era continuação
da antiga Rua da Palha. Ali se localizara outrora o Bar Chaves e, mais tarde, o
Clube Liberdade. Na porta do bar, uma criança, também de pé, com uma expressão
de vitória nos olhos, mantinha o dedo indicador da mão direita apontado em
direção ao chafariz. Era o Orlandinho, na sua roupinha de marinheiro, com uma
chupeta na boca e uma gaitinha na mão esquerda......

Parabéns pelo texto. No mais elevado dos sentimentos o invejo pela graça de poder viver sua cidade, resplandecente cidade capital do sul do litoral paulista de outros tempos, e ter memória para perpetuar.
ResponderExcluirParabéns.
Aproveito para lembrar que nesta data, quatro heróis paulistas deixaram a vida para entrar na história. Viva o MMDC.
Roberto J. Pugliese - como sempre saudoso do Vale do Ribeira.