quinta-feira, 22 de maio de 2014

LENDAS IGUAPENSES: O CHAFARIZ MISTERIOSO


                   


 

        Foi numa tarde qualquer e o papo seguia sem rumo prévio: música, política, velhas lembranças. Não sei a propósito de quê, mas, no vai-e-vem da conversa, Orlandinho revelou:

        - Quando eu era criança, brincava num chafariz, atrás da Basílica.

        - Chafariz atrás da Basílica? Interessante, não lembro disso!

        - É, mas eu lembro. Eu morava ali mesmo na praça e brincava ao redor desse chafariz, que ficava bem perto de casa.

        Assenti provisoriamente com a revelação e, por algum tempo, fiquei preocupado com essa minha inexplicável amnésia. Por fim, me conformei. A memória é mesmo uma coisa caprichosa. Quem já não foi trapaceado por ela? Quem não foi sacaneado por aquele “branco” súbito que ataca nos piores momentos, quando você precisa lembrar o nome do velho amigo que aparece inesperadamente, ou daquele remédio milagroso que curou sua enxaqueca?

Mesmo levando isso em conta, nas horas vagas andei catando imagens esparsas de tempos passados, relembrei aquelas corrimaças de infância pelas ruas de poeira e lama da antiga Iguape. Repassei cuidadosamente o tempo e o espaço daquelas brincadeiras. Lembrei até das imagens infantis de meus companheiros, hoje sisudos senhores, os que escaparam do inexorável alfanje. Entretanto, por mais que eu aquecesse os neurônios, a imagem do chafariz teimava em não aparecer. A esperança era apelar para outras testemunhas. Zizi, da mesma geração do Orlandinho, estranhou:

        - Eu morava bem ali, no sobrado, atrás da Basílica, mas não lembro de nenhum chafariz!

        Diminuí um pouco a desconfiança com minha memória, mas percebi que estava surgindo um grande mistério. Voltei a interrogar Orlandinho, expondo, com muito tato, as dúvidas da Zizi. Orlandinho, conciliador, ponderou:

        - É uma opinião respeitável, mas eu tenho certeza de que havia um chafariz naquele local!

        Diante dessa convicção implacável, para o sim ou para o não, o jeito era buscar mais testemunhas. Afinal, até Cristo precisou de quatro evangelistas para comprovar suas palavras e seus milagres! Mal comparando, para ter certeza a respeito de um chafariz perdido no tempo, talvez eu precisasse consultar umas dez pessoas. Procurei o Liquinho. Ele deveria se lembrar do local, ainda mais que foi um moleque andarilho, caçador de passarinhos e de novidades. Encontrei-o descendo na direção do antigo mercado. Parecia preocupado.

        - Algum problema?

        - Não, é que só corri 5 quilômetros, pela manhã, estou em dívida com minhas pernas. Vou andar um pouco na Baixada, pra compensar.

        - Ainda que mal pergunte, você tem lembrança ou viu alguma fotografia de um chafariz que havia atrás da Basílica?

        - Não, mas em compensação tenho uma fotografia do chafariz do Largo do Rosário, onde estou com vários amigos. Era uma turminha boa, mas de pouca resistência. Éramos onze e dez morreram. A única prova de que a foto é autêntica sou eu...

        Tive que prosseguir nas buscas. Num encontro casual com o Nesi, na porta do Correio, pedi notícias do chafariz. Ele me fez uma revelação surpreendente:

        - Havia um chafariz no meio da rua, que depois foi transferido para os fundos da Basílica, no espaço cercado pelo murinho.

        Como era a primeira vez que ouvia falar nessa transferência, busquei outras evidências. Apelei para o livro do historiador Roberto Fortes, amplo repositório de lembranças iguapenses. Ali tive notícias de que havia, sim, um chafariz no local indicado, no meio da praça, só que fora retirado em 1921, pelo prefeito Floramante Giglio. Nenhuma notícia sobre sua transferência. Como que a dar maior veracidade à extinção do chafariz, ficou registrado um epigrama que mexia com a pequena estatura do prefeito:

        “Nosso prefeito que apenas/ Não foi grande por um triz/ Detesta as coisas pequenas/ Por exemplo: um chafariz!”

        Nessas alturas, o chafariz contemplado por Orlandinho estava me parecendo uma espécie de continente da Atlântida, do qual se têm notícias, mas nenhuma prova concreta de sua existência. Continuei minha pesquisa, buscando depoimentos de pessoas mais antigas. Interrogada, Lourdes não titubeou:

        - Tinha um chafariz ali, sim. A gente brincava de mãe-a-mãe, em volta dele...

        Ponto para Orlandinho, ponto para Nesi, ameaça de pênalti em Zizi. Mas, já que eu tinha mexido com testemunhas mais antigas, resolvi consultar o livro de Paulo de Avelar, “Largo de São Benedito”, de 1989. Paulo de Avelar, para quem não sabe, é o pseudônimo de José Boaventura Barbosa, o Zuzu, autor de vários livros de memórias sobre a cidade.

        A obra acima citada tem um capítulo especialmente dedicado aos chafarizes de Iguape. “No meu tempo de juventude”, começa ele, que nasceu em 1916, “conheci quatro desses chafarizes”. E especifica mais adiante os locais onde eles se encontravam: Largo da Misericórdia, Funil de Cima, Largo do Rosário e Largo de São Benedito. Nenhuma palavra sobre o chafariz atrás da Basílica, que por sinal ainda não era Basílica, mas apenas Igreja Matriz.

        Depois das informações acima, Paulo de Avelar narra uma conversa que teve com o seu Carlos, na qual este lhe contou que, quando moço, abastecia sua casa com água retirada no chafariz do Largo do Rosário. Uma informação perfunctória, mas enfim, toca no assunto. Continuei a perquirir. Numa manhã de domingo, trocando idéias na “Boca Maldita”, o reduto de fofocas, falei com Plínio, a respeito do chafariz misterioso. Sua resposta foi segura e tranqüila:

        - No bar do Marcos, há uma foto desse chafariz.

        No dia seguinte lá estava eu no bar do Marcos. Consegui uma cópia da fotografia do esquivo chafariz. Estava comprovado. O mistério tinha sido elucidado. Fiquei satisfeito, mas por pouco tempo. Alguém mais observador me alertou:

        - Não há nenhum poste de luz na praça. Essa fotografia é de antes de 1920, ano em que a luz elétrica chegou a Iguape.

        Pronto. Começava outra vez o mistério! Estava suspenso o pênalti contra Zizi. Parafraseando Vinícius de Morais, Orlandinho que me perdoe, mas uma fotografia datada é fundamental. Parecia que a história ia parar por aí, mas aconteceu algo sensacional. De tanto pensar no assunto, acabei sonhando com ele. No sonho, eu estava de pé, atrás da Igreja Matriz, ao lado do danado do chafariz, uma peça de rara beleza, com pedestal de mármore rajado, torneira de cobre brilhante, encimada por uma torrinha esculpida em pedra. Eu estava voltado para o lado da praça que era continuação da antiga Rua da Palha. Ali se localizara outrora o Bar Chaves e, mais tarde, o Clube Liberdade. Na porta do bar, uma criança, também de pé, com uma expressão de vitória nos olhos, mantinha o dedo indicador da mão direita apontado em direção ao chafariz. Era o Orlandinho, na sua roupinha de marinheiro, com uma chupeta na boca e uma gaitinha na mão esquerda......

 

 

Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto. No mais elevado dos sentimentos o invejo pela graça de poder viver sua cidade, resplandecente cidade capital do sul do litoral paulista de outros tempos, e ter memória para perpetuar.

    Parabéns.

    Aproveito para lembrar que nesta data, quatro heróis paulistas deixaram a vida para entrar na história. Viva o MMDC.

    Roberto J. Pugliese - como sempre saudoso do Vale do Ribeira.

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