A rotunda e sonolenta caraça do Coronel
Balduíno se encrespou quando um fio de luz da manhã entrou pela fresta do
janelão de madeira grossa, fechado a taramela. Estremunhando, levou a mão à
outra metade do leito, mas Sinhá Margarida já se espertara e andava a gerenciar
o abafado bulício na cozinha. O Coronel, depois de se aliviar no penico, tirou
o camisolão, vestiu as calças por sobre as ceroulas de algodão, pôs uma camisa
e calçou as botinas.
- Pronto pro que der e vier! - Murmurou, no seu velho hábito
de falar sozinho.
O relógio da sala bimbalhou seis horas.
Tudo dentro do calculado, o mundo nos eixos, na forma de seus mandados. Sinhá
Margarida vigiava o forno, a negra Luzinda despejava água fervente no coador de
pano. As xícaras de porcelana portuguesa em seus lugares. No canto da mesa, as
canecas de louça dos empregados. O coronel perguntou pelo Tião.
- Tô aqui, patrão, co remo e a
espingarda. Só farta o farné.
- É bom que esteja - falou o Coronel
para si mesmo.
Tião sumiu. A negra Luzinda, o rosto
sério, continuava na faina. Gente assanhada não fazia o gosto do Coronel. O
café tomado, o Coronel colocou um blusão caqui e repassou os olhos no espelho.
- Pavão, pra se impor, tem que armar as
penas!
Tião, Luzinda e Sinhá Margarida tomavam
seu café, na cozinha. Sem o Coronel havia uma folga mínima para
intimidades. Tião era cria do Coronel.
- Cavalo que se doma cedo, vira bom
trotador - ronronava o Coronel.
Ele andava de olhos para Luzinda e
chegou a gaguejar a propósito, ao Coronel, que não se amofinou, achou até que
podia ser, mas tudo a seu tempo:
- Arroz só se colhe quando está
amarelinho nos cachos.....
A canoa saiu do Porto Grande às sete
horas. Chegar ao Piunduva, passando pelo Valo, o Rio Ribeira e o Rio de Una,
demandaria pelo menos cinco horas. Contando a estada no sítio, o acerto das
providências, uma rodada pela roça e mais a viagem de volta, estaria em casa à
noitinha. Sentado no banco da proa, a espingarda no colo, o Coronel vigiava as
margens do rio, à espreita de capivaras e socós. De vez em quando, tirava sua
caixinha de rapé, fazia longas fungadas e espirrava com estrondo. O som do remo
ecoava nas ribanceiras. O Coronel contemplava a paisagem, num jeito alargado de
pertinência e posse.
- O que não é de ninguém acaba sendo
nosso!
Enfim chegaram à fazenda. Desembarcado,
foi até o escritório improvisado, num canto do paiol. Sentou num banco e,
enquanto Bonifácio lhe falava, abriu seu farnel e pôs-se a comer o frango com
farofa, separando de lado uns pedaços para o peão do remo. O encarregado foi
dando conta do que havia: o arroz madurando, saída e entrada de camaradas, a
vaca que pariu, a arrumação da pinguela. Terminado o relatório e a refeição, o
coronel saiu do barracão, vagueou pelo roçado e vistoriou o terreno onde
pretendia levantar uma nova casa para si.
- Tatu só fica feliz depois que cava seu
buraco!
A tarde já avançava, quando ele se
aprestou para voltar. Tião pegou o remo e foi para o porto. Bonifácio, com ar
entendido, encarou o céu:
- É bom memo vosmecê i logo. O tempo tá
enferruscando!
Não tinham canoado nem duas horas e o vento
enganoso foi virando furacão. O Coronel pestanejava em desassossego:
- O pior da vida é estar no mato sem cachorro!
Tião olhou-se, preocupado:
- Paramos no seu Venâncio, patrão? A
chuva tá perto!
- É, acalca o remo senão tomamos água -
falou resignado.
Assim que a canoa embicou no barranco,
Venâncio surgiu à porta de casa e se apressou em ajudar o Coronel a
desembarcar.
- Boas tardes, Coronel. Chegou na
horinha! A tempestade tá estourando.
O Coronel cumprimentou o sitiante e o
acompanhou até a casa. Caminhando, o
Coronel cogitava na bela mulher de Venâncio, morena clara, pele de criança,
cabelos lisos e brilhantes, e fez um rápido gesto de arrumação no penteado,
alisou o bigode, aprumou os ombros, abotoou a blusa caqui.
- Égua de valor, pede cavalo garboso! -
Murmurou baixinho.
Logo que entrou na casa, Venâncio alteou
a voz:
- Esmeralda, prepara um café para o
Coronel.
- Não carece o incômodo, seu Venâncio.
- Não é incômodo nenhum, Coronel. Vamos
sentar, por favor.
Conversaram sobre o preço do arroz,
política e atos do Governo, enquanto Tião espreitava o tupê de nuvem, que logo
virou temporal. Logo a anfitriã veio com o café. Assim que Esmeralda surgiu na
sala, o Coronel entrou numa exageração de cortesias, elogiando a arrumação da
casa, o gosto do café, finalizando por oferecer até a acolhida ao casal em sua
casa da cidade. Esmeralda corada de acanhamento, mas lisonjeada pela atenção
daquele homem importante, caprichava no servir. Atento à sua hospedeira, o
Coronel captou um olhar furtivo e interrogador que ela lançou ao marido, que
assentiu com a cabeça. Ela então retirou
do guarda-comida uma espécie de bolo branco e o trouxe para a mesa, com uma
pose orgulhosa. Venâncio falou, pomposo:
- O Coronel vai provar uma finura que a
Esmeralda faz: cuscuz de brejaúva!
Entretanto, para decepção do visitante,
o anfitrião não deixou o prato ao seu dispor, mas lascou o bolo em fatias
magrelas e serviu-as em pratinhos de sobremesa, um tico para cada um.
Repartidos e servidos os pedaços, devolveu o restante do bolo à mulher que o
recolocou no guarda-comida. O acepipe
era mesmo supimpa. O Coronel elogiou os anfitriões e comeu sua cota de cuscuz
com certa avidez, mas não pôde deixar de lamentar, intimamente, a sovinice do
servido, se bem que nem cogitasse dum queixume. (- A cavalo dado não se olham
os dentes! – pensou, desconsolado). Terminaram de comer, o tempo foi escoando e
a chuva não estacava. Escureceu e o Coronel percebeu que seria difícil
prosseguir viagem. De qualquer maneira, devia insistir em partir, intenção logo
coberta pelas objeções de Venâncio:
- Nossa casa é pobre, Coronel, mas tem
sempre um lugarzinho para os amigos. No quarto ao lado tem uma cama e uma esteira
pro Tião se acomodar.
Esmeralda, alvoroçada e prestativa,
arrumou a cama para o visitante, antes de ir para seu quarto. O Coronel deu
boa-noite e se recolheu. O chuá teimoso da chuva até que convidava ao sono, mas
o Coronel continuou desperto, deitado de costas, olhando para o teto, ansiado.
Matutava, resolvia, desistia, esperava. Por fim, decidiu-se e levantou.
- Raposa que tem medo de mundéu fica na
toca e passa necessidade!
Caminhando lentamente, penetrou na sala,
onde tremeluzia uma velha lamparina. O silêncio só era quebrado pelo chiado da
chuva. Dera alguns passos, rodeando a mesa, quando, para seu grande espanto, à
porta do quarto do casal anfitrião, delineada no lusco-fusco da lamparina,
surgiu Esmeralda, com seu belo corpo mal contido na generosa camisola branca, e
um amplo sorriso no seu rosto de anjo. Desnorteado, constrangido, sem saber o
que fazer ou dizer, o Coronel baixou a cabeça, num cumprimento desajeitado.
Esmeralda, diante do ar vexado do Coronel, se mostrou mais senhora de si.
Aproximou-se, num passo leve, mas seguro, e falou, meiga, num tom de alegre
cumplicidade:
- Pode fazer o que vosmecê está
querendo.
- Mas seu marido pode acordar! –
ronronou o Coronel, tentando conter seu vozeirão.
- Que nada, ele tem sono pesado - ela
falou, com um sorriso convidativo.
A carantonha do Coronel Balduíno teve um
lampejo de criança:
- Enquanto a onça dorme, o mato é
nosso!
O Coronel, então, abriu silenciosamente
o guarda-comida, apanhou uma faca, cortou uma generosa fatia do delicioso
cuscuz de brejaúva e regalou-se!
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