terça-feira, 6 de maio de 2014

CUSCUZ DE BREJAÚVA




 

        A rotunda e sonolenta caraça do Coronel Balduíno se encrespou quando um fio de luz da manhã entrou pela fresta do janelão de madeira grossa, fechado a taramela. Estremunhando, levou a mão à outra metade do leito, mas Sinhá Margarida já se espertara e andava a gerenciar o abafado bulício na cozinha. O Coronel, depois de se aliviar no penico, tirou o camisolão, vestiu as calças por sobre as ceroulas de algodão, pôs uma camisa e calçou as botinas.

        - Pronto pro que  der e vier! - Murmurou, no seu velho hábito de falar sozinho.  

        O relógio da sala bimbalhou seis horas. Tudo dentro do calculado, o mundo nos eixos, na forma de seus mandados. Sinhá Margarida vigiava o forno, a negra Luzinda despejava água fervente no coador de pano. As xícaras de porcelana portuguesa em seus lugares. No canto da mesa, as canecas de louça dos empregados. O coronel perguntou pelo Tião.

        - Tô aqui, patrão, co remo e a espingarda. Só farta o farné.

        - É bom que esteja - falou o Coronel para si mesmo.

        Tião sumiu. A negra Luzinda, o rosto sério, continuava na faina. Gente assanhada não fazia o gosto do Coronel. O café tomado, o Coronel colocou um blusão caqui e repassou os olhos no espelho.

        - Pavão, pra se impor, tem que armar as penas!

        Tião, Luzinda e Sinhá Margarida tomavam seu café, na  cozinha. Sem o  Coronel havia uma folga mínima para intimidades. Tião era cria do Coronel.

        - Cavalo que se doma cedo, vira bom trotador - ronronava o Coronel.

        Ele andava de olhos para Luzinda e chegou a gaguejar a propósito, ao Coronel, que não se amofinou, achou até que podia ser, mas tudo a seu tempo:

        - Arroz só se colhe quando está amarelinho nos cachos..... 

        A canoa saiu do Porto Grande às sete horas. Chegar ao Piunduva, passando pelo Valo, o Rio Ribeira e o Rio de Una, demandaria pelo menos cinco horas. Contando a estada no sítio, o acerto das providências, uma rodada pela roça e mais a viagem de volta, estaria em casa à noitinha. Sentado no banco da proa, a espingarda no colo, o Coronel vigiava as margens do rio, à espreita de capivaras e socós. De vez em quando, tirava sua caixinha de rapé, fazia longas fungadas e espirrava com estrondo. O som do remo ecoava nas ribanceiras. O Coronel contemplava a paisagem, num jeito alargado de pertinência e posse.  

        - O que não é de ninguém acaba sendo nosso!

        Enfim chegaram à fazenda. Desembarcado, foi até o escritório improvisado, num canto do paiol. Sentou num banco e, enquanto Bonifácio lhe falava, abriu seu farnel e pôs-se a comer o frango com farofa, separando de lado uns pedaços para o peão do remo. O encarregado foi dando conta do que havia: o arroz madurando, saída e entrada de camaradas, a vaca que pariu, a arrumação da pinguela. Terminado o relatório e a refeição, o coronel saiu do barracão, vagueou pelo roçado e vistoriou o terreno onde pretendia levantar uma nova casa para si.

        - Tatu só fica feliz depois que cava seu buraco!

        A tarde já avançava, quando ele se aprestou para voltar. Tião pegou o remo e foi para o porto. Bonifácio, com ar entendido, encarou o céu:

        - É bom memo vosmecê i logo. O tempo tá enferruscando!

        Não tinham canoado nem duas horas e o vento enganoso foi virando furacão. O Coronel pestanejava em desassossego:

        - O pior da vida é estar no mato sem cachorro!

        Tião olhou-se, preocupado:

        - Paramos no seu Venâncio, patrão? A chuva tá perto!

        - É, acalca o remo senão tomamos água - falou resignado.

        Assim que a canoa embicou no barranco, Venâncio surgiu à porta de casa e se apressou em ajudar o Coronel a desembarcar.

        - Boas tardes, Coronel. Chegou na horinha! A tempestade tá estourando.

        O Coronel cumprimentou o sitiante e o acompanhou até a casa.  Caminhando, o Coronel cogitava na bela mulher de Venâncio, morena clara, pele de criança, cabelos lisos e brilhantes, e fez um rápido gesto de arrumação no penteado, alisou o bigode, aprumou os ombros, abotoou a blusa caqui.

        - Égua de valor, pede cavalo garboso! - Murmurou baixinho.

        Logo que entrou na casa, Venâncio alteou a voz:

        - Esmeralda, prepara um café para o Coronel.

        - Não carece o incômodo, seu Venâncio.

        - Não é incômodo nenhum, Coronel. Vamos sentar, por favor. 

        Conversaram sobre o preço do arroz, política e atos do Governo, enquanto Tião espreitava o tupê de nuvem, que logo virou temporal. Logo a anfitriã veio com o café. Assim que Esmeralda surgiu na sala, o Coronel entrou numa exageração de cortesias, elogiando a arrumação da casa, o gosto do café, finalizando por oferecer até a acolhida ao casal em sua casa da cidade. Esmeralda corada de acanhamento, mas lisonjeada pela atenção daquele homem importante, caprichava no servir. Atento à sua hospedeira, o Coronel captou um olhar furtivo e interrogador que ela lançou ao marido, que assentiu com a cabeça.  Ela então retirou do guarda-comida uma espécie de bolo branco e o trouxe para a mesa, com uma pose orgulhosa. Venâncio falou, pomposo:

        - O Coronel vai provar uma finura que a Esmeralda faz: cuscuz de brejaúva!

        Entretanto, para decepção do visitante, o anfitrião não deixou o prato ao seu dispor, mas lascou o bolo em fatias magrelas e serviu-as em pratinhos de sobremesa, um tico para cada um. Repartidos e servidos os pedaços, devolveu o restante do bolo à mulher que o recolocou no guarda-comida.  O acepipe era mesmo supimpa. O Coronel elogiou os anfitriões e comeu sua cota de cuscuz com certa avidez, mas não pôde deixar de lamentar, intimamente, a sovinice do servido, se bem que nem cogitasse dum queixume. (- A cavalo dado não se olham os dentes! – pensou, desconsolado). Terminaram de comer, o tempo foi escoando e a chuva não estacava. Escureceu e o Coronel percebeu que seria difícil prosseguir viagem. De qualquer maneira, devia insistir em partir, intenção logo coberta pelas objeções de Venâncio:

        - Nossa casa é pobre, Coronel, mas tem sempre um lugarzinho para os amigos. No quarto ao lado tem uma cama e uma esteira pro Tião se acomodar.

        Esmeralda, alvoroçada e prestativa, arrumou a cama para o visitante, antes de ir para seu quarto. O Coronel deu boa-noite e se recolheu. O chuá teimoso da chuva até que convidava ao sono, mas o Coronel continuou desperto, deitado de costas, olhando para o teto, ansiado. Matutava, resolvia, desistia, esperava. Por fim, decidiu-se e levantou.

        - Raposa que tem medo de mundéu fica na toca e passa necessidade!

        Caminhando lentamente, penetrou na sala, onde tremeluzia uma velha lamparina. O silêncio só era quebrado pelo chiado da chuva. Dera alguns passos, rodeando a mesa, quando, para seu grande espanto, à porta do quarto do casal anfitrião, delineada no lusco-fusco da lamparina, surgiu Esmeralda, com seu belo corpo mal contido na generosa camisola branca, e um amplo sorriso no seu rosto de anjo. Desnorteado, constrangido, sem saber o que fazer ou dizer, o Coronel baixou a cabeça, num cumprimento desajeitado. Esmeralda, diante do ar vexado do Coronel, se mostrou mais senhora de si. Aproximou-se, num passo leve, mas seguro, e falou, meiga, num tom de alegre cumplicidade:

        - Pode fazer o que vosmecê está querendo.

        - Mas seu marido pode acordar! – ronronou o Coronel, tentando conter seu vozeirão.

        - Que nada, ele tem sono pesado - ela falou, com um sorriso convidativo.

        A carantonha do Coronel Balduíno teve um lampejo de criança:

        - Enquanto a onça dorme, o mato é nosso!                               

        O Coronel, então, abriu silenciosamente o guarda-comida, apanhou uma faca, cortou uma generosa fatia do delicioso cuscuz de brejaúva e regalou-se!

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