(Transcrito
do site MUSEU VIVO DO FANDANGO)
O termo fandango tem uma história
longa e controversa. Para alguns pesquisadores teria origem árabe. Para outros,
suas origens viriam da Península Ibérica, quando Espanha e Portugal ainda não
eram reinos de fronteiras definidas. Existe ainda uma vertente que classifica a
origem do fandango na América Latina, de onde teria partido para a Espanha no
início do século XVIII.
Uma de suas definições mais antigas e
de uso generalizado é a de fandango como um baile ruidoso. Encontramos
referências a bailes e conjuntos de danças com esse nome em Portugal, Espanha e
França. Em Portugal, há formas de danças e funções assim nomeadas no
Arquipélago dos Açores, na região entre o Ribatejo e a Estremadura e, mais ao
norte, na fronteira com a Espanha, onde se congrega às principais danças dos
Países Bascos. Na região de Andaluzia, é tanto dança como gênero específico,
possuindo fortes vínculos com o universo do flamenco. Nas Américas, o termo é usado,
desde o período colonial, no México e na Colômbia, designando uma dança ou um
conjunto de danças.
No Brasil, teve suas origens e
influências ibéricas miscigenadas com outras matrizes culturais, assumindo
regionalmente, com o mesmo nome de fandango, aspectos e características
completamente diferentes. Como resume Câmara Cascudo, o termo fandango designa,
em terras brasileiras, o auto marítimo do ciclo natalino, encontrado em alguns
estados nordestinos, e o baile sulista, encontrado no Rio Grande do Sul, Paraná
e São Paulo. No interior de São Paulo, na região de Sorocaba, há também uma
variante de dança sapateada, herdada dos tropeiros, assemelhada à catira ou
cateretê.
Fandango Caiçara
O fandango encontrado no litoral
paulista e no paranaense, independentemente de suas origens, não seria apenas
fruto de uma herança musical levada ao sul do Brasil pelos portugueses. Essa
teria se miscigenado com a música que aqui já havia, também de violas e
rabecas, nas vilas e caminhos, desde os tempos da capitania de São Vicente. Sua
musicalidade transitou por terra e mar, pelos canais e ilhas que interligam o
litoral paranaense ao de Cananéia e Iguape, em São Paulo, na região conhecida
como Lagamar, estendendo-se até o litoral norte de São Paulo.
O fandango aqui apresentado é
compreendido então como uma manifestação cultural popular brasileira,
fortemente associada ao modo de vida caiçara, no qual dança e música são
indissociáveis de um contexto cultural mais amplo. Sua prática sempre esteve
vinculada à organização de trabalhos coletivos - mutirões, puxirões ou pixiruns
- nos roçados, nas colheitas, nas puxadas de rede ou na construção de
benfeitorias, quando o organizador oferecia como pagamento aos ajudantes
voluntários, um fandango, espécie de baile com comida farta. Para além dos
mutirões, o fandango era a principal diversão e momento de socialização dessas
comunidades, estando presente em diversas festas religiosas, batizados,
casamentos e, especialmente, no carnaval, onde se comemoravam os quatro dias ao
som dos instrumentos do fandango.
Atualmente é cada vez mais rara a
realização de mutirões, embora estes ainda sejam organizados em localidades
como Rio Verde, Utinga e Taquari. Com o avanço da especulação imobiliária e a
transformação de grandes áreas da região em unidades de conservação, inúmeras
comunidades tradicionais foram obrigadas a migrar para outras regiões,
desarticulando importantes núcleos organizadores de fandangos.
Os fandangueiros encontraram, no
entanto, outras formas de vivenciar o fandango, através da organização de
clubes de baile, de festas comunitárias, formação de grupos artísticos ou em
recriações por grupos mirins. Nos dias atuais, é crescente a colaboração das
comunidades com a realização de trabalhos de pesquisa e afirmação cultural das
práticas caiçaras locais, através da formação de associações de fandangueiros e
outras formas de organização.
Música,
dança e instrumentos
O fandango encontrado na região
possui uma estrutura bastante complexa, envolvendo diversas formas de execução
de instrumentos musicais, melodias, versos e coreografias. A formação
instrumental básica do fandango é composta, geralmente, por dois tocadores de
viola, que cantam as melodias em intervalos de terças, um tocador de rabeca,
chamado de rabequista ou rabequeiro, e um tocador de adufo ou adufe. O violão é
usado em vários grupos de Cananéia e Iguape, assim como na Barra do Ararapira
(Ilha do Superagui - Guaraqueçaba/PR). O cavaquinho também é bastante comum no
estado de São Paulo e na Barra do Ararapira. Já o bandolim é encontrado apenas
no grupo Violas de Ouro de São Paulo Bagre (Cananéia/SP), utilizando, no
entanto, uma afinação completamente diferente da usual. Também são encontrados
outros instrumentos de percussão como o pandeiro, surdos, tantãs, entre outros.
O machete, instrumento de cordas bastante utilizado no passado para a iniciação
musical dos fandangueiros por ser mais simples e menor que a viola, é bastante
raro atualmente.
Cada forma musical, definida pelos
mestres violeiros, é chamada de marca ou moda, dependendo da região, e possui
toques e danças específicas, que se dividem, basicamente, em duas categorias:
os valsados ou bailados - dançados em pares por homens e mulheres, com ou sem
coreografias específicas - e os batidos ou rufados. Nos batidos, os homens
utilizam tamancos feitos de madeira resistente, como canela ou laranjeira,
intercalando palmas e tamanqueando no assoalho de madeira, de acordo com a
marca ou moda executada. As mulheres acompanham os dançadores em coreografias
circulares, nas quais os pares vão traçando figuras, sendo a mais comum a de um
oito, no sentido anti-horário. A maior parte dos grupos, atualmente, possui um
mestre marcador, ou mestre-de-sala, responsável por guiar os demais dançadores
e evitar que se cometa balaio, como eram chamados pelos antigos os erros nas
danças. Grande parte dos instrumentos encontrados no fandango é de fabricação
artesanal, tendo a caixeta ou caxeta (Tabebuia cassinoides, D.C.) como a madeira
mais utilizada, e trazendo fama a alguns dos construtores de instrumentos ou “fabriqueiros”,
encontrados ao longo do caminho.
A viola de fandango, também chamada de viola branca, em Iguape, guarda algumas semelhanças com a viola
nordestina, mas diferencia-se especialmente pelo variado número de cordas e
pela presença da turina, cantadeira ou periquita, corda mais curta que vai
somente até o meio do braço da viola e, como o próprio nome diz, dá o tom da
voz do violeiro. Em sua grande maioria, as violas possuem dez casas como as
violas caipiras de meia-regra, mas os fandangueiros não as chamam de casas e,
sim, de pontos, que são feitos com arame. As cravelhas são feitas de madeira
dura e encaixadas no braço da viola, através de furos feitos com ferro quente.
Morretes é a única localidade no Paraná em que a viola mantém as dez cordas, sendo
nove finas e uma um pouco mais grossa no quinto par, mas não possui a turina.
As violas de fandango são feitas
com madeiras da região, podendo ser de fôrma (de aro) ou cavoucada (de cocho,
escavada). No primeiro caso, o construtor tira filetes de madeira e põe na
fôrma por alguns dias para que ela seja moldada e vai aos poucos montando o
instrumento, peça a peça. No segundo, o construtor derruba uma árvore de
tamanho suficiente para se fazer uma viola e, depois, vai esculpindo corpo e braço
em uma peça única, colocando o tampo ou o fundo ao final. Além da caixeta,
outras madeiras mais resistentes, como o cedro e a canela, podem ser utilizadas
especialmente para confeccionar as cravelhas, sobrebraços, cavaletes e os
detalhes do acabamento em machetaria.
Os fandangueiros não possuem uma
altura padrão para afinação das violas, que podem ser três: pelas três, pelo
meio e intaivada (nome que, provavelmente, deriva de oitavada). A afinação em
Morretes é denominada de pelas três, e esta só foi encontrada novamente na
Barra de Ararapira, tocada pelo violeiro Fausto Pires. A afinação pelas três é
a única no fandango em que, à maneira da viola caipira, as cordas soltas formam
um dos acordes da música. O quinto e o quarto pares de cordas são sempre
tocados soltos. O outro acorde é feito com uma meia pestana, onde o dedo um
prende na quinta casa o primeiro, segundo e terceiro pares de cordas.
A afinação pelo meio é usada somente
na Ilha dos Valadares, em Paranaguá, enquanto a intaivada é tocada em
Paranaguá, Guaraqueçaba, Cananéia e Iguape. Os intervalos para afinação entre
as cordas, nas afinações pelo meio e intaivada, são semelhantes aos intervalos
do violão, porém em oitavas diferentes. A afinação pelas três é semelhante a
afinação guitarra da viola caipira. Usa-se na quase totalidade das modas a
tônica (T) e a dominante (D) para o acompanhamento. Os violeiros usam apenas os
quinto, sexto e sétimo pontos da viola para acompanhar as marcas ou modas,
salvo raros momentos onde registramos o violeiro ponteando a viola.
A rabeca também pode ser feita na
fôrma ou cavoucada, utilizando-se vários tipos de madeira diferentes. O
instrumento possui três cordas em quase toda a região, à exceção de Morretes e
Iguape, onde é encontrada com quatro cordas. A afinação mais usada, da corda
mais grossa para a mais fina, é de uma quarta justa. A rabeca sempre dobra a
primeira voz e, nos momentos em que a moda ou marca não está sendo cantada, faz
uma linha melódica própria, tendo um toque - ou ponteado - específico para cada
uma. Segundo os fandangueiros, a rabeca enfeita o fandango e, por não ter
pontos como a viola, é mais difícil de ser tocada. O dandão e a chamarrita,
modas valsadas, possuem vários temas diferentes para rabeca, e podem ser tocados
na mesma moda conforme a vontade do rabequista. Em São Paulo os toques de
rabeca são diferentes dos toques do Paraná.
No acompanhamento rítmico temos o
adufo, espécie de ancestral artesanal do pandeiro, onde o couro é deixado mais
frouxo para obtenção de um som mais grave. O adufo era, no passado,
confeccionado com couro de cachorro-do-mangue (mangueiro), veado ou cutia.
Atualmente, com as proibições da caça desses animais, é mais comum o uso do
couro bovino ou bode, embora o adufo venha sendo cada vez mais substituído pelo
pandeiro.
Nos estudos dedicados ao fandango
encontramos registros que dão conta de até duzentas marcas ou modas
registradas. Embora este número nos pareça um pouco exagerado, de fato,
impressiona a quantidade de toques e coreografias. No caso de São Paulo, essa
prática é atualmente pouco comum, embora antigos fandangueiros ainda saibam
dançá-lo .
Dentre os valsados mais tocados,
temos as chamarritas e os dandãos, como são chamados no Paraná e em Cananéia, e
os bailados e passadinhos, em Iguape. A
chamarrita, também chamada de chamarrita de louvação, em muitos lugares, era a
primeira marca que dava início ao fandango, onde se pedia licença para a
brincadeira e era saudado o dono da festa. Vinha antes mesmo do anu, primeiro
batido dançado. Atualmente, as chamarritas não possuem mais essa função, sendo
apenas uma forma de tocar e dançar o fandango valsado.
No Paraná, a grande maioria não
possui refrão. O violeiro canta os versos que ele já conhece de cor, adaptados
às diferentes melodias de chamarritas por ele conhecidas. Geralmente os dois
violeiros usam a mesma batida e a rabeca acompanha em uníssono os cantadores,
possuindo alguns toques solo para os entremeios das estrofes. Em São Paulo, a
maioria das chamarritas registradas possui refrão. Os toques tradicionais de
rabeca são diferentes dos toques paranaenses e o violeiro não precisa cantar
todos os versos do refrão depois da despedida, podendo cantar apenas o primeiro
e o último. O dandão, ao contrário da chamarrita, apresenta refrão na grande
maioria dos registros realizados. Podem começar tanto pelo refrão como por
qualquer uma das quadras escolhidas pelo fandangueiro. Depois da despedida, o
violeiro tem que cantar todo o refrão. No dandão, como na chamarrita, a rabeca
acompanha em uníssono o canto e possui outros toques para o entremeio
instrumental.
A maior parte das músicas cantadas
no fandango não possui autor conhecido, sendo consideradas muito antigas pelos
tocadores. Destacamos, no entanto, a presença dos modistas ou tiradores de moda
da cidade de Cananéia, como Ângelo Ramos, Armando Teixeira, Paulo de Jesus
Pereira, do grupo Violas de Ouro de São Paulo Bagre, e do Jovem Valdemir Antônio
Cordeiro, o “Vadico”, do grupo Jovens Fandangueiros de Itacuruçá (Ilha do
Cardoso - Cananéia).