RELEMBRANÇAS POÉTICAS
A
arte: Freud explica
O amor é belo, mas se torna doloroso
quando seu alvo está fora do alcance. E, aí, como escreveu Manuel Bandeira, o
jeito é “tocar um tango argentino”. Esse desvio do impulso amoroso para a criatividade
artística é o que Freud chamou de “sublimação”. Graças a esse mecanismo de
compensação, aliado a uma boa dose de talento, é que podemos nos deleitar com
tantos poemas e canções, mesmo suspeitando que seus autores tenham passado por
noites de insônia ou bebedeiras catárticas. Que eles (ou elas) se ralem nos
espinhos do ciúme e do desprezo de suas amadas (ou amados), desde que nos
propiciem boas obras de arte! No final das contas, a poesia ou a música,
dedicadas aos entes queridos, ingratos ou inalcançáveis, acabam trazendo
vantagens tanto para quem as faz, porque o alivia da angústia, como para quem
as usufrui, como válvula de escape para suas crises amorosas, ou simplesmente
para seu prazer.
No exercício da poesia, em função
da intensidade emocional, do delírio da paixão, o artista muitas vezes, torce,
exagera, disfarça ou omite, o objeto de seu devaneio. Na gramática das artes,
essas simulações de denominam hipérbole, metáfora, metonímia e outros termos
esdrúxulos. Se, por um lado, esses recursos de retórica arrastam o pensamento
para fora da realidade, por outro, trazem uma luz de beleza e expressividade ao
objeto artístico. Envolvido pelos fluidos inebriantes da arte, o leitor sai da
rotina do relógio e do calendário, esquece o bom senso, o ramerrão do
dia-a-dia, abole as leis da física e toda a lógica que os cientistas e filósofos
levaram séculos para descobrir.
É dentro desse espírito exaltado
que, na composição da valsa “Neusa”, de Antônio Caldas e Celso de Figueiredo, o
poeta não se contenta em devotar apenas os seus versos à amada, mas invoca para
ela todo o esplendor da noite: “Há, na luz clara e tranquila do luar / Um poema
em louvor do teu olhar”. Mais à frente, com “A tua boca a sorrir / Mostra pérolas
roubadas ao mar”. No simples ato de elogiar um sorriso, o autor introduz um
dramático assalto às riquezas do mar, que conduz nossa imaginação aos tempos da
pirataria. Em “Páginas de Amor”, de Cândido da Vera Mendes (Índio) e do
inesquecível Pixinguinha, o autor da letra, lamentando a sorte de quem “esconde
uma paixão”, usa uma imagem, lindíssima para a expressar a dor que se oculta: “Lágrimas
existem que rolam na face / Há outras, porém, que rolam no coração”. Isso tudo,
acompanhado com os floreios do saxofone do Pixinga, amolece o coração mais
empedernido!
Mas é claro que esses caprichosos
malabarismos poéticos não começaram há pouco tempo. Só para não voltar muito
atrás, não é que até Gregório de Matos, o repentista zombeteiro, deixou-se
levar pelos arroubos poéticos, para cantar a beleza da donzela Da. Ângela, sua
contemporânea? “Mas vejo, que por bela e por galharda / Posto que os Anjos
nunca dão pesares / Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda”. Um salto histórico
mais à frente e encontramos uma demonstração de que, para o poeta, nem a morte
apaga o encanto da beleza feminina. José Basílio da Gama, no episodio “Morte de
Lindoia”, do poema “Uraguai”, descreve: “Inda conserva no pálido semblante / Um
não sei que de magoado e triste / Que os corações mais duros enternece / Tanto
era bela no seu rosto a morte.”
Seria injustiça e grave esquecimento
não citarmos aqui o nosso “Príncipe dos Poetas”, o antológico Olavo Brás
Martins dos Guimarães Bilac, o homem para quem só “os que amam podem ter ouvido
/ Capaz de ouvir e de entender estrelas”. Num soneto intitulado “Milagre”, ele
mostra a redescoberta do amor, por duas pessoas idosas: “Depois de tantos anos,
frente a frente / Um encontro. O fantasma do meu sonho / E, de cabelos brancos,
mudamente / Quedamos frios, num olhar tristonho”. Após o anticlímax, de repente
as mãos se tocam e, então: ..”E fulgimos, volvendo à mocidade / Aureolados dos
beijos que tivemos / No divino milagre da saudade”.
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