Na canoa esculpida em um único
tronco, o pescador rema para chegar ao cerco. No percurso, além da certeza de
encontrar os peixes, carrega consigo a satisfação de ver sua armadilha
funcionar mais uma vez. Aos 66 anos, Francisco Adelar Xavier mantém viva a arte
da pesca de cerco-fixo, e garante o sustento de sua família com esta técnica,
há muitos anos. Para ele, todo cerco é igual, mas montar um que pegue peixe não
é tão simples assim. “Eu mesmo já montei muito cerco na minha vida e até hoje
continuo aprendendo”, afirma. E se orgulha desse conhecimento e de ensinar essa
cultura para seu filho. Cada cerco-fixo dura, em média, três meses, depois
precisa ser refeito.
Xavier vive no Vale do Ribeira,
litoral sul de São Paulo, junto à maior região de manguezais do Estado,
conhecida como complexo estuarino do Lagamar. O cerco-fixo é uma das
modalidades mais utilizadas na pesca de subsistência e comercial artesanal. Não
se sabe bem quem começou a usar essas grandes armadilhas, mas elas aparecem em
muitos pontos do litoral brasileiro, sempre onde as marés comandam o ritmo da
vida. Em Cananéia, os pescadores (cerqueiros) lembram de um português, morador
de Santos (SP), como um dos primeiros a montar um cerco-fixo, na metade do
Século 20. O nome dele era Ranulfo Paiva. Mas alguns pesquisadores afirmam que
a origem é indígena e se confunde com a identidade cultural dos próprios
pescadores. A palavra caiçara, tupi-guarani (caá = mato, galhos, paus; e içara
= armadilha, cercado). E era usada tanto para denominar estacas colocadas à
volta das aldeias, como para a armadilha de pesca feita com galhos fincados na
água.
Seja como for, o fato é que o
cerco-fixo hoje é uma estrutura de bambu ou taquara-mirim, madeira e arame. É
composto por uma panagem, espécie de tela de bambu, sustentada por moirões
dispostos em forma de curral e instalados à beira do mangue. Devido a tal
disposição e à maneira como os peixes são capturados, também é chamado de
curral. A panagem é usada para a construção da casa-de-peixe, o local onde o
peixe fica preso. A distância entre os bambus que a compõem varia entre 3 e 5
centímetros, de acordo com a espécie a ser capturada. Para a pesca da tainha
(Mugil platanun) é usado o espaçamento maior. Quando a pesca é de peixes de
fundo, como robalo (Centropumus undecimalis) e parati (Mugil curema), a
distância é menor.
Ao se aproximar do mangue,
acompanhando a maré, o cardume de peixes primeiro encontra um obstáculo: a
‘parede’, também feita de bambus e conhecida como espia, com aproximadamente 80
metros de comprimento. Fixada desde a margem, ela se estende até a casa-de peixe,
o centro do curral. O cardume tenta desviar do obstáculo, mas não acha passagem
e acaba entrando no cerco, de onde não consegue mais sair.
A próxima etapa é a despesca, a
retirada dos peixes com uma rede ou puçá. Os peixes ficam vivos, dentro d’água,
até a chegada do pescador. Para os conservacionistas, esse é um dos aspectos
mais interessantes do curral, pois evita a morte acidental de espécies não
comerciais ou de exemplares fora de padrão. Os peixes indesejados são
simplesmente soltos, sem ferimentos ou excesso de estresse.
O
inverno, com a migração das tainhas do Rio Grande do Sul até o litoral
paulista, para a reprodução, é a época de fartura para os caiçaras. Firmino
fala que a pesca fica mais fácil e também mais rentável. A espécie tem alto
valor comercial, entra em grandes cardumes pelo estuário, e muitos exemplares
acabam presos na armadilha. A tainha pode atingir um metro de comprimento e
chega a pesar 6 kg. Quando vem o verão, monta-se a panagem mais estreita e o
objetivo passa a serem os peixes de fundo. Eles são menores, mas também entram
em boa quantidade.
A fixação dos moirões precisa estar
correta, senão é derrubado com a movimentação da maré. Na confecção da panagem
não pode haver erro, senão os peixes escapam. A colheita da taquara-mirim é
feita na lua minguante para o material ter uma durabilidade maior. “A taquara
está cada vez mais difícil de encontrar aí na mata, porque a turma corta tudo.
A gente escolhe a taquara madura para cortar; a turma, não. Corta tudo e depois
escolhe as boas, perde muito”, desabafa. Só na hora de empalhar o cerco
(colocar a panagem), o pescador precisa de ajuda. E nem sempre pode contar com
ela. “Hoje marquei com meus amigos e ninguém apareceu. Sozinho não tem como
fazer, vou ter que esperar”, lamenta Firmino.
A bióloga Flávia Camargo de
Oliveira, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pesquisa a cultura
da pesca de cerco-fixo na região no estuário com apoio do Instituto de
Pesquisas de Cananéia (IPeC). Segundo ela, essa é a quarta geração a usar tal
modalidade. No passado, a pesca de curral era apenas de subsistência,
atualmente os cercos são montados, na maioria das vezes, com finalidade
comercial.
O empresário Pedro Cardoso garante
que tudo o que construiu foi através da pesca de cerco-fixo. E, mesmo
administrando seus empreendimentos em Cananéia, não deixa de se dedicar a essa
atividade. Ele mantém três cercos montados na região e chega a tirar 700 kg de
peixe por semana, na alta temporada. Para isso, conta com uma ajuda de um boto
que empurra o cardume para o cerco. Até parece história de pescador, mas, em
nossa edição 41, de setembro de 2007, relatamos outras histórias de botos cinza
(Sotalia fluviatilis), “auxiliares” dos homens na pesca da tainha, em Santa
Catarina.
Ali, em Cananéia, o boto-cinza “ajudante”
apareceu há 14 anos. “Eu pegava os peixes pequenos e jogava pra ele. Fui
jogando cada vez mais perto até que um dia ele pegou da minha mão. Hoje, quando
tem um cardume por perto, ele joga água pra cima, fazendo os peixes entrarem no
cerco. Ele sabe que depois, quando venho fazer a despesca, vai ganhar peixe
também”, assegura Cardoso.
Bisneto de pescadores de cerco-fixo,
Cardoso ficou conhecido por sua amizade com o boto. E até faz palestras para
biólogos e pesquisadores interessados na atividade pesqueira no Lagamar,
tentando manter viva uma tradição em vias de desaparecer. “Eu sou o mais novo
aqui, que trabalha com cerco. A maioria dos filhos não segue a tradição. Se
você passar por aí vai ver muito cerco, mas só três ou quatro estão corretos.
Eu aprendi com meu pai e minha mãe, aliás, ela era quem tecia a palha
(panagem)”, conta.
Repassar a arte do cerco-fixo é
garantia de preservação de uma forma de pesca não-agressiva, sem desperdícios.
Mas, para não faltar peixe no curral, é preciso também conscientizar as futuras
gerações sobre a importância do conhecimento para a conservação das espécies e
dos estuários.


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