quinta-feira, 2 de maio de 2013

PEIXES NO CURRAL: A PESCA TRADICIONAL DE CERCO-FIXO





          Na canoa esculpida em um único tronco, o pescador rema para chegar ao cerco. No percurso, além da certeza de encontrar os peixes, carrega consigo a satisfação de ver sua armadilha funcionar mais uma vez. Aos 66 anos, Francisco Adelar Xavier mantém viva a arte da pesca de cerco-fixo, e garante o sustento de sua família com esta técnica, há muitos anos. Para ele, todo cerco é igual, mas montar um que pegue peixe não é tão simples assim. “Eu mesmo já montei muito cerco na minha vida e até hoje continuo aprendendo”, afirma. E se orgulha desse conhecimento e de ensinar essa cultura para seu filho. Cada cerco-fixo dura, em média, três meses, depois precisa ser refeito.
         Xavier vive no Vale do Ribeira, litoral sul de São Paulo, junto à maior região de manguezais do Estado, conhecida como complexo estuarino do Lagamar. O cerco-fixo é uma das modalidades mais utilizadas na pesca de subsistência e comercial artesanal. Não se sabe bem quem começou a usar essas grandes armadilhas, mas elas aparecem em muitos pontos do litoral brasileiro, sempre onde as marés comandam o ritmo da vida. Em Cananéia, os pescadores (cerqueiros) lembram de um português, morador de Santos (SP), como um dos primeiros a montar um cerco-fixo, na metade do Século 20. O nome dele era Ranulfo Paiva. Mas alguns pesquisadores afirmam que a origem é indígena e se confunde com a identidade cultural dos próprios pescadores. A palavra caiçara, tupi-guarani (caá = mato, galhos, paus; e içara = armadilha, cercado). E era usada tanto para denominar estacas colocadas à volta das aldeias, como para a armadilha de pesca feita com galhos fincados na água.
         Seja como for, o fato é que o cerco-fixo hoje é uma estrutura de bambu ou taquara-mirim, madeira e arame. É composto por uma panagem, espécie de tela de bambu, sustentada por moirões dispostos em forma de curral e instalados à beira do mangue. Devido a tal disposição e à maneira como os peixes são capturados, também é chamado de curral. A panagem é usada para a construção da casa-de-peixe, o local onde o peixe fica preso. A distância entre os bambus que a compõem varia entre 3 e 5 centímetros, de acordo com a espécie a ser capturada. Para a pesca da tainha (Mugil platanun) é usado o espaçamento maior. Quando a pesca é de peixes de fundo, como robalo (Centropumus undecimalis) e parati (Mugil curema), a distância é menor.





            Ao se aproximar do mangue, acompanhando a maré, o cardume de peixes primeiro encontra um obstáculo: a ‘parede’, também feita de bambus e conhecida como espia, com aproximadamente 80 metros de comprimento. Fixada desde a margem, ela se estende até a casa-de peixe, o centro do curral. O cardume tenta desviar do obstáculo, mas não acha passagem e acaba entrando no cerco, de onde não consegue mais sair.
           A próxima etapa é a despesca, a retirada dos peixes com uma rede ou puçá. Os peixes ficam vivos, dentro d’água, até a chegada do pescador. Para os conservacionistas, esse é um dos aspectos mais interessantes do curral, pois evita a morte acidental de espécies não comerciais ou de exemplares fora de padrão. Os peixes indesejados são simplesmente soltos, sem ferimentos ou excesso de estresse.
           O inverno, com a migração das tainhas do Rio Grande do Sul até o litoral paulista, para a reprodução, é a época de fartura para os caiçaras. Firmino fala que a pesca fica mais fácil e também mais rentável. A espécie tem alto valor comercial, entra em grandes cardumes pelo estuário, e muitos exemplares acabam presos na armadilha. A tainha pode atingir um metro de comprimento e chega a pesar 6 kg. Quando vem o verão, monta-se a panagem mais estreita e o objetivo passa a serem os peixes de fundo. Eles são menores, mas também entram em boa quantidade.
            A fixação dos moirões precisa estar correta, senão é derrubado com a movimentação da maré. Na confecção da panagem não pode haver erro, senão os peixes escapam. A colheita da taquara-mirim é feita na lua minguante para o material ter uma durabilidade maior. “A taquara está cada vez mais difícil de encontrar aí na mata, porque a turma corta tudo. A gente escolhe a taquara madura para cortar; a turma, não. Corta tudo e depois escolhe as boas, perde muito”, desabafa. Só na hora de empalhar o cerco (colocar a panagem), o pescador precisa de ajuda. E nem sempre pode contar com ela. “Hoje marquei com meus amigos e ninguém apareceu. Sozinho não tem como fazer, vou ter que esperar”, lamenta Firmino.
            A bióloga Flávia Camargo de Oliveira, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pesquisa a cultura da pesca de cerco-fixo na região no estuário com apoio do Instituto de Pesquisas de Cananéia (IPeC). Segundo ela, essa é a quarta geração a usar tal modalidade. No passado, a pesca de curral era apenas de subsistência, atualmente os cercos são montados, na maioria das vezes, com finalidade comercial.
           O empresário Pedro Cardoso garante que tudo o que construiu foi através da pesca de cerco-fixo. E, mesmo administrando seus empreendimentos em Cananéia, não deixa de se dedicar a essa atividade. Ele mantém três cercos montados na região e chega a tirar 700 kg de peixe por semana, na alta temporada. Para isso, conta com uma ajuda de um boto que empurra o cardume para o cerco. Até parece história de pescador, mas, em nossa edição 41, de setembro de 2007, relatamos outras histórias de botos cinza (Sotalia fluviatilis), “auxiliares” dos homens na pesca da tainha, em Santa Catarina.
           Ali, em Cananéia, o boto-cinza “ajudante” apareceu há 14 anos. “Eu pegava os peixes pequenos e jogava pra ele. Fui jogando cada vez mais perto até que um dia ele pegou da minha mão. Hoje, quando tem um cardume por perto, ele joga água pra cima, fazendo os peixes entrarem no cerco. Ele sabe que depois, quando venho fazer a despesca, vai ganhar peixe também”, assegura Cardoso.
           Bisneto de pescadores de cerco-fixo, Cardoso ficou conhecido por sua amizade com o boto. E até faz palestras para biólogos e pesquisadores interessados na atividade pesqueira no Lagamar, tentando manter viva uma tradição em vias de desaparecer. “Eu sou o mais novo aqui, que trabalha com cerco. A maioria dos filhos não segue a tradição. Se você passar por aí vai ver muito cerco, mas só três ou quatro estão corretos. Eu aprendi com meu pai e minha mãe, aliás, ela era quem tecia a palha (panagem)”, conta.
           Repassar a arte do cerco-fixo é garantia de preservação de uma forma de pesca não-agressiva, sem desperdícios. Mas, para não faltar peixe no curral, é preciso também conscientizar as futuras gerações sobre a importância do conhecimento para a conservação das espécies e dos estuários.

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